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Sobre Traditionis Custodes: “Eles nem sequer sabem o que lhes foi tirado”

1984, obra de George Orwell
Por Dr. Michael Fiedrowicz

“Uma reminiscência aterrorizante de 1984 de George Orwell”

Lex orandi-lex credendi

Em 16 de julho de 2021, dia da festa de Nossa Senhora do Carmo, foi promulgada a Exortação Apostólica, na forma de Motu Proprio Traditionis Custodes, sobre o uso da Liturgia Romana antes da reforma de 1970. Diz o artigo 1: “Os livros litúrgicos promulgados pelos Papas São Paulo VI e São João Paulo II em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II são a única expressão (l’unica espressione) da lex orandi do Rito Romano”.

Para apreciar todas as implicações desta disposição, é necessário saber que o termo lex orandi – a lei ou regra da oração – faz parte de uma fórmula mais ampla cunhada o século V. O monge Próspero de Aquitania, entre 435 e 442, formulou o princípio: “para que a regra da oração determine a regra da fé” (ut legem credendi lex statuat supplicandi). No fundo havia uma controvérsia teológica sobre a graça. A questão era se o começo primeiro da fé (initium fidei) também procedia da graça de Deus ou da decisão do homem. Próspero fez referência à oração de intercessão e de ação de graças da Igreja, que é significativa para a doutrina da graça: “Mas também levemos em conta os mistérios das orações sacerdotais, que, transmitidas pelos apóstolos, são oferecidas solenemente de maneira uniforme em todo o mundo e em toda a Igreja Católica, para que a regra da oração determine a regra da fé” (indiculus 8). Em seguida, Próspero enumera várias petições realizadas pela igreja em suas orações oficiais e deduz delas a necessidade da graça divina, já que, do contrário, a petição e a ação de graças da igreja seriam inúteis e careceriam de sentido. Para Próspero, portanto, a fé da Igreja se manifestava na oração da Igreja, de modo que a oração oficial da Igreja é a norma pela qual a fé da Igreja deve ser lida.


O mestre de Próspero, Agustin, já tinha desenvolvido a ideia de que a oração da Igreja dá testemunho de sua fé e a torna reconhecível. O princípio lex orandi-lex credendi, daí em diante, passou a fazer parte da compreensão básica da doutrina católica. A liturgia, como as Escrituras e a Tradição, é um locus theologicus, um lugar de descobrimento, uma fonte de conhecimento e um testemunho daquilo que a Igreja crê. O Papa Pio XII disse que a liturgia era “um reflexo lei da doutrinal transmitida por nossos antepassados e crida pelo povo cristão” (Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, 1954). No mesmo sentido destacou: “A liturgia em seu conjunto, portanto, contém a fé católica na medida em que dá testemunho público da fé da Igreja” (Encíclica Mediator Dei, 1947).

A única expressão de todos os elementos do Rito Romano?

O Papa Francisco, contudo, agora define, melhor dizendo, reduz, a liturgia do Rito Romano ao que está expresso nos livros litúrgicos promulgados por Paulo VI e João Paulo II. Estes livros são “a única expressão da lex orandi do Rito Romano”. Se assumirmos o significado original [ou seja, o valor nominal] da terminologia aqui utilizada, então a lex credendi – o que se deve crer – também teria que ser tomada somente desses livros. Mas isto está certo? São realmente estes livros os únicos que bastam para poder ler a fé católica a partir deles?

Com efeito, a carta papal que acompanha o motu proprio sugere que todo o essencial do rito romano anterior à reforma litúrgica também pode ser encontrado no missal de Paulo VI: “Aqueles que desejam celebrar com devoção a forma litúrgica anterior não encontrarão grande dificuldade de encontrar no Missal Romano, reformado segundo o espírito do Concílio Vaticano II, todos os elementos do Rito Romano, especialmente o Canon Romano, que é um dos elementos mais característicos”. Deixando de lado a experiência da prática litúrgica, onde o Canon Romano quase nunca é utilizado no Novus Ordo – nem nos serviços paroquiais, nem nas igrejas episcopais, nem nas liturgias papais -, é preciso perguntar se realmente “todos os elementos do Rito Romano” se encontram nos novos livros litúrgicos. Esta pergunta só pode ser respondida afirmativamente por quem considera obsoleto a maioria das coisas que caracterizou o Rito Romano durante séculos e constituiu sua riqueza teológico-espiritual, como evidentemente é o caso do Papa Francisco.

Reforma litúrgica: damnatio memoriae

Isso incluiria tudo o que foi erradicado pelas forças propulsoras da reforma litúrgica, seja para acomodar os protestantes em um esforço ecumênico equivocado ou para satisfazer a suposta mentalidade do “homem moderno”.

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Só para citar alguns exemplos: As festas dos santos foram abolidas ou degradadas na hierarquia litúrgica. As orações do ofertório, com a ideia clara e inequívoca de sacrifício, foram substituídas por uma oração de mesa judaica. O Dies irae, a comovedora representação do Juízo Final, já não é mais tolerada na Missa de Réquiem. Omitiu-se a advertência do apóstolo Paulo na epístola da Quinta-feira Santa de que quem comunga indignamente come e bebe a própria condenação (1 Cor 11,27). As Orations (coletas): essas “joias mais belas do tesouro litúrgico da Igreja” (Dom Gérard Calvet, OSB), que figuram entre os componentes mais antigos de seu patrimônio espiritual e estão completamente impregnadas de dogma, constituem praticamente uma summa theologica in nuce, que expressa a fé católica de forma íntegra e concisa… Tão somente as Orations (coletas) do Rito Clássico, das quais só uma parte muito pequena foi incorporada sem mudanças ao Missal de Paulo VI, contém e conservam numerosas ideias que se debilitaram ou desapareceram por completa nas versões modificadas posteriores, mas que pertencem indissoluvelmente à fé católica: o desprendimento dos bens terrenos e a aliança eterna; a luta contra a heresia e o cisma; a conversão dos infiéis; a necessidade de voltar à Igreja Católica e à verdade não adulterada; os méritos, os milagres, as aparições dos santos; a ira de Deus contra o pecado e a possibilidade de condenação eterna. Todos estes aspectos estão profundamente arraigados na mensagem bíblica e conformaram inequivocamente a piedade católica durante quase dois milênios.

Contudo, além destas modificações diretas do próprio Rito Romano, não podemos esquecer as outras concomitâncias que revelam uma mudança profunda na compreensão básica da Santa Missa: destruíram-se os preciosos altares maiores, ocupando seu lugar as mesas de comida; queimaram-se ou venderam os paramentos valiosos; “Tinnef e Trevira” (M. Mosebach) fizeram sua entrada [1], o canto gregoriano e a língua sacra do latim foram desterrados da liturgia. A abordagem da reforma litúrgica lembra em parte à damnatio memoriae da Roma Antiga: o apagamento da memória daqueles governantes de que não gostavam. Apagavam os nomes dos arcos do triunfo e se fundiam as moedas com suas imagens. Nada pode fazer com que se recordem deles. Todas as mudanças que foram feitas no curso das reformas litúrgicas se assemelham inequivocamente a uma damatio memoriae, um apagamento deliberado da memória da liturgia católica tradicional.

Paralelos no século IV

Na história da Igreja, algumas vezes ocorreram situações simulares. Em meados do século IV, negou-se a divindade de Cristo e a do Espírito Santo: O Filho e o Espírito eram somente criaturas de Deus. Os bispos e as igrejas estavam amplamente nas mãos dos hereges arianos. Os que permaneciam ortodoxos se reuniam em lugares remotos para render culto. No ano de 372, o bispo Basílio de Cesareia fez uma comovedora descrição da situação:

Os ensinamentos dos padres são desprezados, as tradições apostólicas são ignoradas e as igrejas estão cheias das invenções dos inovadores. Os pastores foram expulsos e, em seu lugar, trouxeram lobos salteadores para destruir o rebanho de Cristo. Os lugares de oração estão abandonados por aqueles que ali se reuniam, os terrenos baldios estão cheios de lamentos. Os anciãos lamentam-se quando comparam o tempo anterior com o presente; os jovens dão ainda mais pena, porque nem sequer sabem o que lhes foi tirado (Epístola 9:2).

Estas palavras do século IV certamente podem ser aplicadas às gerações nascidas depois do Concílio: durante muito tempo nem sequer sabiam o que lhes havia sido retirado, conheciam apenas a aparência atual da Igreja.

Duas expressões ou uma?

O Papa Bento XVI, com o motu proprio Summorum Pontificum de 7 de julho de 2007, voltou a tornar acessíveis os tesouros do inalterado depósito da fé da Igreja, para que as gerações mais jovens pudessem agora conhecê-los de novo e testemunharem por sua própria experiência o que lhes havia sido arrebatado no princípio. O então Pontífice disse que havia “duas expressões da lex orandi da Igreja”, a expressão ordinária (ordiaria expressio) que se encontra no Missal promulgado por Paulo VI, e a expressão extraordinária (extraordinaria expressio) que se encontra no Missal Romano reeditado por São Pio V e João XXIII (SP, art. 1). Em seu mais recente motu proprio, o Papa Francisco faz referência direta a esta passagem (espressione della lex orandi) em sua escolha de palavras e na estrutura da frase, mas se coloca em posição diametralmente oposta a ela ao determinar que agora só há uma “única forma de expressão” (l’unica espressione) da lex orandi como válida (TC, art. 1).

Todavia, qual significado a forma tradicional da liturgia pode continuar reclamando para a consciência da fé da Igreja? Se o recente motu proprio e a carta que o acompanha explicitam que o objetivo real a médio ou longo prazo é a destruição total da liturgia tradicional, e que, por enquanto, continua concedendo um período de graça com drásticas restrições que pretendem impedir rigorosamente qualquer possibilidade de que continue se expandindo, então – no caso de não se materializar uma resistência decisiva – o lamento de São Basílio o Grande sobre o destino da geração mais jovem de seu tempo voltará a ter uma força renovada: “porque nem sequer sabem o que lhes foi retirado”.

Salvar a Esposa de Cristo da amnesia

A normativa recém promulgada recorda de forma aterrorizante aquilo que George Orwell descreveu como uma visão sombria do futuro em sua novela de 1948, 1984. Trata-se da ditadura de um Partido que governa em um estado de vigilância totalitária: “O Grande Irmão te vigia”. Neste estado há diferentes ministérios. O Ministério da Paz prepara as guerras. O Ministério da Abundância faz gestão da economia socialista da escassez. Não faz menção a um Ministério da Saúde, mas há um Ministério da Verdade, que difunde a propaganda oficial da mentira: o partido sempre tem razão. Para que isso seja assim, é preciso apagar completamente o passado. Não deve mais haver comparações possíveis; tudo deve ser posto como se não houvesse outra alternativa. O Ministério da Verdade ocupa-se de mudar toda a recordação do passado e de tudo o que pudesse tornar possível tal comparação. Orwell escreve:

Já não sabemos quase literalmente nada sobre a Revolução e os anos anteriores à Revolução. Todo registro foi destruído ou falsificado, todo livro foi reescrito, todo quadro foi repintado, toda estátua, rua e edifício foi renomeado, toda data foi alterada [2].

Associar as palavras de Orwell ao recente Concílio não é ilegítimo, já que o Vaticano II foi amplamente celebrado como uma “revolução da igreja desde cima”. Assim se dá a situação paradoxal: para que a Esposa de Cristo, a Igreja, seja preservada da amnesia, da perda da memória, os católicos fiéis à tradição precisarão demonstrar agora que são contrarrevolucionários; os fiéis conservadores terão que assumir o papel de rebeldes, para que eles mesmos sejam, em última instância, ante o juízo da história e sobretudo aos olhos de Deus, os verdadeiros e únicos traditionis custodes, guardiões da tradição, realmente merecedores deste nome.


NOTAS

[1] “Tinnef” significa artigos fabricados com plásticos reciclados. “Trevira” é um tipo de tecido de poliéster.

[2] Edición de Signet Classics, p. 155.

Fonte: Adelante la Fe

Sobre Dr. Michael Fiedrowicz

Prof. Dr. Michael Fiedrowicz (nascido em 1957), especialista em História da Igreja e em liturgia, e autor do melhor livro acadêmico sobre a Missa Tradicional em Latim: “The Traditional Mass: History, Form ad Theology of the Classical Roman Rite” (Angelico Press, 2020), é docente na Faculdade de Teologia de Tréveris na cátedra de História da Igreja Antiga, Patrologia e Arqueologia Cristã. Também é sacerdote da Arquidiocese de Berlim.

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