Em entrevista recente para a televisão da suíça, o Arcebispo Arthur Roche, Prefeito da Congregação para Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, figura chave na implementação da carta apostólica do Papa Francisco que restringe a celebração da Missa Tradicional em Latim, Traditionis Custodes, afirmou:
A forma normal de celebração do Rito Romano encontra-se naqueles documentos que foram publicados a partir do Concílio Vaticano II. Ecclesia Dei e Summorum Pontificum foram promulgados para encorajar sobretudo os Lefebvristas a retornarem plenamente à unidade com a Igreja.
Uma breve revisão histórica é suficiente para mostrar que esta afirmação tardia do arcebispo não é factualmente verdadeira. Na sua carta aos bispos em 7 de julho de 2007, Papa Bento XVI foi claro a respeito da sua principal razão para publicar o Summorum Pontificum:
Cheguei assim à razão positiva que me motivou a atualizar através deste Motu Proprio o de 1988. Trata-se de chegar a uma reconciliação interna no seio da Igreja. Olhando para o passado, para as divisões que no decurso dos séculos dilaceraram o Corpo de Cristo, tem-se continuamente a impressão de que, em momentos críticos quando a divisão estava a nascer, não fora feito o suficiente por parte dos responsáveis da Igreja para manter ou reconquistar a reconciliação e a unidade… Aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial. Faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar.
Nove anos depois, em Last Testament: In His Own Words (London: Bloomsbury Continuum, 2016), Bento responde sobre a alegação da Missa em Latim ter sido reautorizada como concessão à Fraternidade Sacerdotal São Pio X: “Isto é absolutamente falso! Para mim, o que é importante é a unidade da Igreja consigo mesma, no seu interior, com o seu passado. Aquilo que era santo para a Igreja antes não pode de nenhuma maneira ser mal agora”. Ambas as declarações não deixam nenhuma ambiguidade sobre os motivos de Bento XVI em liberar a celebração da Missa Tradicional em Latim.
Mesmo assim o Arcebispo Roche declara:
É claro que Traditionis Custodes está dizendo, “Okay, este experimento não foi inteiramente bem sucedido, então vamos voltar ao que o Concílio pediu para a Igreja”. E devemos lembrar que esta não foi a vontade do Papa. Esta foi a vontade da vasta maioria dos bispos da Igreja Católica que juntos se reuniram no 21º concílio ecumênico para guiar o Papa em relação ao futuro. O que foi produzido em 1579 era totalmente apropriado para o tempo. O que foi produzido nesta época também está totalmente apropriado para este tempo (ênfase adicionada; ver vídeo aqui em 1:55)
Quando em 16 de julho de 2021 o Papa Francisco promulgou Traditionis Custodes, foi enfatizado a importância de escutar a vontade dos bispos. De fato, ele disse que um dos principais motivos para tomar sua decisão de restringir a celebração da Missa Tradicional em Latim (e a administração dos outros sacramentos no Rito Antigo) foi os resultados da “consulta detalhada” aos bispos feita em 2020 pela Congregação para Doutrina da Fé (CDF).
Na carta que acompanha Traditionis Custodes, o Papa cita a consulta aos bispos do mundo:
Instruí a Congregação para Doutrina da Fé a distribuir um questionário aos bispos para avaliar a implementação do Motu proprio Summorum Pontificum. As respostas revelam uma situação que me preocupa e entristece e que me persuade da necessidade de intervir.
Com base nesses resultados, que foram compilados pela CDF num relatório detalhado, Papa Francisco disse que:
Em defesa da unidade do Corpo de Cristo, sou forçado a revogar a faculdade concedida pelos meus Predecessores. O uso distorcido que tem sido feito desta faculdade é contrário às intenções que levaram a conceder a liberdade para celebrar a Missa com o Missale Romanum de 1962.
Mais adiante, na mesma carta, Papa Francisco novamente enfatizou que sua decisão de restringir a liturgia romana tradicional veio em resposta direta à consulta feita aos bispos do mundo. Ele escreveu:
Respondendo a suas requisições, eu tomei a firme decisão de ab-rogar todas as normas, instruções, permissões e costumes que precedem o presente Motu proprio, e declaro que os livros litúrgicos promulgados pelos santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, constituem a única [‘unica’] expressão da lex orandi do Rito Romano.
Mas Traditionis Custodes realmente reflete a vontade dos bispos do mundo, particularmente nos países onde a celebração da liturgia do Rito Romano foi mais difundida (Estados Unidos, França e Inglaterra)? E seria justo dizer que Traditionis Custodes não representou adequadamente o relatório detalhado preparado pela CDF?
Na edição impressa de uma palestra proferida na Catholic Identity Conference, intitulada “Traditionis Custodes: Separando Fato da Ficção” e publicada online no The Remnant em 7 de outubro de 2021, eu perguntei sobre qual seria a conclusão que uma pessoa razoável tiraria do relatório principal da CDF. A resposta, segundo informaram fontes confiáveis: uma razoável maioria de bispos, usando diferentes palavras e diferentes formas, basicamente estavam enviando a mensagem: “Summorum Pontificum vai bem. Não mexam nisso”.
Conforme apontei naquela palestra:
Certamente não teria sido 80% os que se expressaram desta maneira. Mas mais de 35% dos bispos teriam dito “Não mexam em nada, deixe tudo como está”. Além disso, outra porcentagem de bispos teria dito: “Basicamente, não mexam nisso, mas haveria uma ou duas coisas que eu sugeriria, como bispo, para ter um pouco mais de controle”. Ao todo, então, de mais de 60% a dois-terços dos bispos manteriam as coisas como estavam, talvez com algumas pequenas modificações. A mensagem foi basicamente para que deixasse a Summorum Pontificum em paz, e que continuasse com uma prudente e cuidadosa aplicação.
Segundo o conhecimento que eu tenho, o que realmente aconteceu é que tudo o que era secundário no relatório principal foi projetado como um problema principal, aumentando, expandindo e desproporcionalizando indevidamente as coisas.
Na edição impressa da minha palestra, eu ainda fiz notar que, segundo era de meu conhecimento:
O relatório principal foi bastante completo, sendo divido em várias seções. Uma parte foi bastante analítica, realizado a análise de diocese por diocese, país por país, região por região, continente por continente, com gráficos analíticos e gráficos circulares. Outra parte foi um resumo de todas as argumentações apresentadas, junto com recomendações e destaques. E é do meu conhecimento que uma parte do relatório continha citações tomadas das respostas que chegaram das dioceses individuais. Esta coletânea de citações seria incluída para dar ao Santo Padre uma amostra geral do que os bispos disseram.
Em 7 de outubro, eu publiquei um primeiro lote com trinta dessas citações oriundas dos bispos do mundo, que podem ser vistas aqui.
Em 28 de outubro, eu publiquei um segundo lote contendo mais catorze citações (ou melhor, quinze, já que uma [um comentário negativo] foi duplicado). Elas podem ser vistas aqui.
Hoje vamos considerar o terceiro e último lote: vinte citações que, juntas com os dois primeiros conjuntos, foram incluídas no relatório principal e detalhado da CDF, aquele que pretendia dar ao Santo Padre uma amostra completa do que os bispos disseram.
Ao revisar essas citações, o leitor faria bem em perguntar: A vontade da maioria dos bispos da Igreja Católica está realmente sendo considerada quando se trata de Traditionis Custodes?
[Em respeito aos membros da hierarquia, omiti os nomes de cada bispo aqui citado e acrescentei apenas o seu país de origem].
COLETÂNEA DAS CITAÇÕES ORIUNDAS DAS RESPOSTAS RECEBIDAS DAS DIOCESES
(Foram abreviadas: EF = Forma Extraordinária; OF = Forma Ordinária)
Aspectos negativos sobre a atitude de certos fiéis
“Eu acho que os padres que ministram [a esses fiéis] não têm a liberdade de um pastor paroquial, e estão frequentemente dependentes da disposição dos fiéis a que servem. Há vigilância da sua doutrina, da sua fidelidade às rubricas, e das suas propostas pastorais” (Um Bispo da França, resposta à questão 3).
“Algumas pessoas que defendem a Forma Extraordinária fazem-no por pressupostos ideológicos. Em qualquer grupo, sempre haverá alguns membros deste tipo. Contudo, eles não representam o espírito de todas as comunidades de fé que participam da EF” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 3).
Sobre o isolamento das comunidades
“O uso da Forma Extraordinário destaca ainda mais os abusos litúrgicos que ainda existem em muitas paróquias, e isto provoca a deserção [dessas paróquias] em favor de lugares onde a EF é celebrada, especialmente por famílias jovens que desejam dar uma sólida formação religiosa para seus filhos. Em última análise, há o risco de enfraquecimento do ‘tecido’ paroquial pelo uso de paróquias de sua própria ‘escolha’ em que os paroquianos participam da liturgia, mas sem um verdadeiro envolvimento comunitário e social nos locais onde praticam a sua fé, e sem ter um espaço social de divulgação nos lugares onde moram” (Um Bispo da França, resposta à questão 3).
“Há pouca interação entre o grupo de fiéis com a paróquia vizinha e a diocese” (Um Bispo da França, resposta à questão 3).
Sobre a irrelevância da Forma Extraordinária para as pessoas
“A questão da Forma Ordinária e Extraordinária é irrelevante para nosso povo. As pessoas simplesmente desejam receber o Corpo do Senhor e não estão interessadas nos tipos de ritos de que participam” (Um Bispo das Filipinas, resposta à questão 3).
Sobre aqueles que são atraídos pela Forma Extraordinária
“A Igreja deveria ser capaz de dizer [aos institutos ligados à Forma Extraordinária] o que eles trazem para ela: vocações, a manutenção de uma tradição litúrgica cheia de riquezas, uma forma de segurança diante das mudanças na Igreja e na cultura” (Um Bispo da França, resposta à questão 9).
Sobre o valor da Forma Extraordinária para a paz e unidade da Igreja
“O Motu Proprio [Summorum Pontificum] possibilitou uma real pacificação do problema litúrgico” (Um Bispo da França, resposta à questão 3).
“Não tem sido a minha experiência, por exemplo, ver a Forma Extraordinária criar divisão, mas justamente o oposto. Ela tem sido capaz de promover e aumentar um senso de comunhão e inclusão quando é trabalhada de modo pastoralmente prudente” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 9).
“Em uma área com grande diversidade étnica como [Nome da Cidade Americana], uma diversidade nas formas litúrgicas é de grande ajuda” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 3).
Sobre o valor teológico, litúrgico e catequético da Forma Extraordinária
“Manter a Forma Extraordinária é a decisão correta, não por ser melhor ou mais apropriada que a Forma Ordinária, mas porque a EF possui uma riqueza em si própria, tanto liturgicamente quanto teologicamente. Por causa disso, a EF é um contraponto estimulante à Forma Ordinária” (Um Bispo da França, resposta à questão 9).
“Muitas famílias não participam exclusivamente da Forma Extraordinária, senão que gostam de participar da EF e da Forma Ordinária. Eu encorajo isso por oferecer uma experiência mais rica da história e desenvolvimento litúrgico” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 3).
“Um bom número de Católicos se tornaram mais fervorosos na vida de fé, muitos homens se tornaram mais ativos na liderança espiritual de suas famílias, e muitos obtiveram um conhecimento mais profundo das tradições da Igreja, o que os ajudou a apreciar mais profundamente as reformas do Vaticano II e a Forma Ordinária da Missa” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 3).
Sobre o valor histórico da Forma Extraordinária
“Como o Papa Bento disse, nós não podemos abandonar o rito da Missa que foi usado por séculos e dizer que não é mais relevante” (Um Bispo da Inglaterra, resposta à questão 9).
Sobre a influência da Forma Extraordinária na Forma Ordinária
“Alguns elementos rotineiramente identificados com a Forma Extraordinária são usados por alguns padres na Forma Ordinária (ex: celebração ad orientem ou canto Gregoriano), mas não se trata de mistura de ritos, senão de escolhas legítimas que são permitidas na Forma Ordinária. Ao mesmo tempo há um mútuo enriquecimento e as rubricas da cada forma são respeitadas” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 5).
Sobre a influência da Forma Extraordinária nos seminários e/ou casas de formação
“Quando um seminarista expressa ao bispo diocesano ou ao reitor do seminário o seu desejo de ser treinado na Forma Extraordinária, ele é enviado a um workshop organizado por um dos institutos que oferecem este treinamento, e com a anuência do bispo diocesano. Esta prática está de acordo com Universae Ecclesiae, n. 21” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 8).
Propostas e/ou perspectivas para o futuro
“A possibilidade de celebrar na Forma Extraordinária deveria ser mantida. Ela corresponde a uma demanda real das pessoas mais jovens. Paróquias deveriam desenvolver relações com padres que celebram na EF. Alguns achavam que esta forma iria desaparecer, mas não é o que está acontecendo. Ela precisa então ser praticada e oferecida em um espírito de verdade e fé. Uma relação paroquial é indispensável” (Um Bispo da França, resposta à questão 9).
“Se o uso da Forma Extraordinária for suspenso, eu acho que a medida deveria ser acompanhada de uma cuidadosa revisão da reforma litúrgica para corrigir algumas das suas fragilidades e, por uma forte intervenção, censurar os abusos que depreciam e distorcem a Liturgia da Igreja Católica” (Um Bispo da Itália, resposta à questão 9).
“Seria necessário que a Santa Sé fornecesse subsídios para formação, catequeses e celebração, para que houvesse uma fonte confiável e unificadora tanto de informação quanto de ministério. Primeiro porque enquanto a diocese busca fornecer subsídios formativos e catequéticos, clérigos e leigos frequentemente se voltam para comunidades que não estão em plena comunhão com a Santa Sé para buscar informação. Segundo porque obter os livros litúrgicos necessários nem sempre é fácil, e novamente as pessoas frequentemente se voltam às comunidades que não estão em plena comunhão para adquirir os livros litúrgicos. Terceiro porque é difícil encontrar um verdadeiro especialista na Forma Extraordinária em nível diocesano que conheça todas as dimensões teológicas, históricas, jurídicas e pastorais (é difícil encontrar especialistas e fontes), por isso os trabalhos da Santa Sé seriam de grande ajuda tanto para a Igreja universal quanto para as dioceses individuais” (Um Bispo dos Estados Unidos, resposta à questão 9).
“O Bispo não se reportará à Comissão Pontifícia como lhe foi solicitado, porque tem assuntos mais urgentes a tratar na diocese” (Um Bispo das Filipinas, resposta à questão 3).
“Eu realmente acredito que Summorum Pontificum não pode ser simplesmente revogada. Isso iria criar mais problemas do que solução” (Um Bispo da Itália, resposta à questão 9).
Fonte: The Remnant