Trecho do artigo “O Pensamento Social de Santo Tomás de Aquino” escrito em 1973, pelo jurista colombiano Fernando Uribe Restrepo. Neste artigo, Restrepo explica de modo breve a importância do pensamento de Santo Tomás de Aquino para preenchimento do vazio que é as ciências sociais modernas, em especial a sociologia.
Princípios sobre antropologia filosófica
É evidente que a contribuição mais valiosa do Tomismo às ciências sociais se encontra nos seus princípios sobre antropologia filosófica, ontologia social e filosofia prática (ética e direito), que vêm para preencher o profundo vazio ideológico e científico deixado pelo positivismo do século XIX, ambiente estreito e poluído onde as diferentes ciências sociais tiveram que se desenvolver, especialmente a sociologia nascente.
Augusto Comte, que morreu sem ter alcançado seu sonho de ser o Pontífice Máximo da sua nova Religião da Humanidade, teve a embeleca de fundar uma física social, complementar às ciências naturais, a que chamou de sociologia. O batismo espúrio de tão nobre ciência explica boa parte as “dores e aflições” que oprimem a sociologia moderna e as ciências e ela relacionadas, conforme aponta magistralmente Pitirim Sorokin: amnésia ou complexo de descobridor, jargãos obtusos, gírias pseudo-científicas, operativismo ilusório, testomania, quantofrenia, atomismo, etc.
Sob a inspiração tomista, a sociologia pôde reinvidicar e reestruturar-se cientificamente como conhecimento certo, causal e geral; como ciência prática a partir de uma base especulativa, pura, com derivações aplicadas e com métodos da ciência real e moral.
União do corpo e alma
A ciência social tomista funda-se em um conceito claro, integral e realista do homem. Ele é união de alma e corpo: não é só barro pensante, como quer ensinar o materialismo, nem tampouco é espírito puro. O homem é racional e por isso sua conduta não obedece unicamente às leis do mundo físico; é, ademais, livre, dono de seus atos em circunstâncias normais, e não está submetido a forças fatalistas e deterministas. A pessoa humana, substância completa de essência espiritual, autônoma (contrário ao que prega o totalitarismo), mas ao mesmo tempo insuficiente (contrário ao que prega o individualismo liberal), é o que é mais perfeito da natureza (contrário ao que prega o coletivismo). As pessoas são iguais por natureza, buscam um fim comum e, portanto, possuem os mesmos direitos fundamentais, mas são desiguais na realidade, merecendo então uns mais que os outros, assim como de uns se exige mais do que a outros.
A esta noção antropológica, o Tomismo agrega sua ontologia social. A sociedade, a partir do ponto de vista especulativo, não é união mecânica nem biológica: é “unidade de relação de muitos homens que se constitui pela interação recíproca com conteúdo intencional comum”. Mas o social também implica em relação transcendental, que é a base da ética social. Esta relação precede à ordem factual e reside na ordem da natureza, que no homem se refere à natureza social. A relação social transcendente, objeto da ética, é a “unidade de relação de muitos homens em relação a um bem comum ordenado moralmente a todos os membros”. É esta a interpretação Tomista da sociedade como realidade comunitária personalizante, que muito difere tanto do individualismo, que nega a realidade social, quanto do coletivismo, que subestima a pessoa, coisifica o corpo social e endeusa o Estado.
Sociedades menores
O indivíduo, por outro lado, não está só frente ao Estado. Integra sociedades menores, mas que não são menos importantes, como a família por exemplo, as quais possuem fórum próprio, que deve ser respeitado e que convém respeitar em uma ordem social, hierarquizado e eficaz, humano e vital.
Estas bases ontológicas permitem ao Tomismo captar a essência mesma do dever-ser ético ou jurídico. É um dever-ser que, sendo lógico, tem base no ser que luta para se realizar, para se aperfeiçoar, para ascender aos bens que lhe são conaturais e próprios ou que simplesmente lhe convém. Não é um dever-ser imposto despoticamente a título de imperativo categórico, conforme pregava Kant. O homem é perfectível e busca ao bem: o bem próprio e o alheio, o bem individual e o social; o bem particular e o bem comum.
O direito e a justiça adquirem assim sua própria e transcendente dimensão: o mundo jurídico não se esgota na consideração da norma válida, como sustante o formalismo; tampouco pode concentrar-se com o estudo da norma eficaz ou aceita como deseja o sociologismo positivista. Sua verdadeira missão é a de disseminar a norma justa e legítima. Para isso deve ater-se ao direito natural que é a lei própria da pessoa humana, moral e social, e não lei de natureza física como pretendem os jus-naturalistas da escola positivista. O direito natural, em si mesmo, é tão imutável como a natureza humana, mas é tão variável e flexível como é a vida e a realidade.
Este esquema tomista da filosofia prática – ciência do objeto operável – que serve para explicar os problemas básico da ética social, do direito e da política -, tem sua base e sua culminação no conceito mestre de bem comum, que é a razão de ser da união social, a medida da justiça e a única justificação da autoridade.
A ordem do bem comum implica uma participação desigual – absolutamente falando – de cada um dos membros nos frutos da cooperação social. Ou, para afirmar o mesmo, implica uma igualdade relativa. Igualdade, porque todos os homens possuem uma mesma natureza e alguns fins comuns; além disso, porque o bem comum exige a participação de todos e de cada um, devendo atualizar-se também em todos. Mas esta participação é igual apenas relativamente, já que as circunstâncias pessoais de cada um são distintas e delas depende a contribuição e aproveitamento para o bem comum. Uma igualdade completa ou absoluta em relação ao bem comum não é desejável nem possível.
O bem comum tem força de norma geral que a todos obriga ética e juridicamente e que também a todos deve beneficiar, pois cada homem depende disso para o desenvolvimento do seu verdadeiro ser, ora dando, ora recebendo. É um bem que só pode dizer que existe enquanto seja atualizado ou encarnado nos indivíduos, aqui e agora (hic et nunc). É esta uma noção vital e dinâmica que, entre outras coisas, serve para distinguir e calibrar as noções de progresso, desenvolvimento e crescimento econômico, que normalmente confundem os economistas.
No entanto, o mundo prático do bem e da justiça, enquanto se refere à conduta humana real e concreta, bem seja do governante ou do governado, do sábio ou do ignorante, do rico ou do pobre, tem outra base ou culminação operativa – funcional dir-se-ia hoje. É nada menos que a virtude da prudência “na qual a inteligência se faz discípula do amor”, segundo definição do próprio Santo Tomás.
Pensamento social
É impossível apresentar de modo completo neste trabalho, por isso foi apresentado um resumo das idéias básicas do pensamento social de Tomás de Aquino, tão rico, abundante e sugestivo como revela ser tal pensamento para esta época de angustia social. É certo que Tomás de Aquino é claro, nítido e preciso na expressão de seu pensamento, mas também é certo que se mostra demasiadamente profundo para ser simples. Conta Chesterton que uma vez uma senhora segurou em suas mãos um livro de peças selecionadas de Santo Tomás e cheia de entusiasmo começou a ler um parágrafo que levava o inocente título de “A Simplicidade de Deus”. Pouco tempo depois, deixou cair o livro e exclamou: “Eita! Se essa é a simplicidade de Deus, não sei qual será sua complexidade”.
Do que foi dito até aqui, talvez já se possa ter noção da importância da filosofia social Tomista para uma cabal compreensão das principais ciências sociais: ética social, direito, economia política e antropologia, tanto a social quanto a cultural ou filosófica. (…)
O Tomismo, além de seus postulados básicos no campo da filosofia social propriamente dita (metafísica e ética), conta hoje com abundante material atualizado que complementa o conhecimento e vivifica a capacidade de ação.
As Encíclicas Pontifícias “Rerum Novarum” (Leão XIII, 1891), “Quadragesimo Anno” (Pio XI, 1931), “Divini Redentoris” (Pio XI, 1937), “Mater et Magistra” (João XXIII, 1961), “Pacem in Terris” (João XXIII, 1963), “Populorum Progressio” (Paulo VI, 1967) e os documentos do Concílio Vaticano II trazem um autorizado caminho axiológico, científico e teológico. Também se fez e está se fazendo neste século muito trabalho sério e profundo de detalhada elaboração e de avançado ensaio, como por exemplo, nas Semanas Sociais da França, nos Códigos de Malines – obras já clássicas -, e nos trabalhos de centros de pensadores sociais de alto nível acadêmico, consagrados ou que agora estão se consagrando em centros Tomistas como a Universidade de Lovaina na Bélgica, a Universidade de Friburgo na Suíça, a Universidade Católica da América em Washington e o Instituto Social Leão XIII de Madrid. No Boletim Bibliográfico Tomista vem se oferecendo, já há várias décadas, uma média anual superior a 500 livros novos de referência e se vem publicando em não menos de 25 revistas periódicas especializadas.
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Traduzido de RESTREPO, Fernando Uribe. El Pensamiento Social de Santo Tomás de Aquino. Revista Universidad Pontificia Bolivariana, v. 33, n.116-118, 1973. pp. 331-333.