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Ver a Cristo no pobre: Um ato de amor sacrifical

Jesus curando ao cego
Por Enzeo Emmanuel dos Santos

Nas Sagradas Escrituras são abundantes e luminosos os versículos de exortação à caridade fraterna, à misericórdia para com o infeliz, o pobre, o aflito; quis assim o Espírito Santo em incontáveis ocasiões inspirar os hagiógrafos a ensinarem uma mesma verdade, incitarem a uma mesma conduta interior e ao mesmo tempo externa para com o sofrimento alheio, até que, na plenitude dos tempos, algumas das principais razões disso ficaram, mais do que nunca, evidentes e concretizadas, porque Deus mesmo se dignou de no-las ensinar mostrando-no-las.

De início, será necessário percorrer um caminho relativamente longo e tecer alguns comentários sobre a relação que a mentalidade contemporânea tem com os sacramentais, Sacramentos e mesmo a oração. O leitor sagaz logo entenderá por quê.

I

Um dos sintomas mais claros da penúria espiritual de nossa época e da falta de fé (a teologal) é o ceticismo com relação à eficácia dos meios que Deus nos concede para obtermos suas graças nos diversos momentos da vida. Não se vê mais o Matrimônio como um Sacramento verdadeiramente eficaz para elevar a maior união existente entre dois seres humanos nessa vida a uma condição sobrenatural passível de ser movida e influenciada diretamente pelo Espírito Santo (em outras palavras, um meio não só eficaz como absolutamente indispensável, dadas as exíguas forças humanas, à obtenção dos fins conjugais e da permanência e crescimento do amor mútuo em ordem à finalidade última da existência); o Batismo não parece senão um evento social onde reunir amigos e familiares para confraternização, e não o tornar-se aperfeiçoativo e ontológico do coração, para se poder viver como filho de Deus e se obterem todas as graças que se tornam “devidas” (por Cristo) ao batizado; a Sagrada Comunhão é tomada rotineiramente, como mais um momento da Missa do qual convém participar, e não como meio (e fim ao mesmo tempo) absolutamente insubstituível para se santificar em crescendo no amor e, então, salvar-se; a Confissão é mais vista como uma espécie consulta psicológica, um desabafo emocional feito a alguém que se dispõe a ouvir do que um manancial de auxílios divinos específicos relativos a tentações e pecados frequentes, habituais.

Quanto aos sacramentais, tanto menos se lhes crê qual se deve; quando muito, usam-se supersticiosamente, como se foram amuletos da sorte, causas suficientes dos efeitos que se buscam produzir, e não como veículos criaturais de que se vale Deus para vir a nós, à semelhança de como veio na carne para salvar-nos. Toda a Criação, que não é má, e sim boa, querida por Deus, é conducente com nossa salvação, na medida em que glorifica a Deus ao mostrar-nos a sua grandeza e onipotência e magnificência e sabedoria, e que está ordenada ao nosso bem, pela infalibilidade da Providência. E não poderia ser de outro modo: regida pela Sabedoria e Amor divinos, consequentemente pela vontade de Deus Pai, sem deixar de ser o que é eleva-se ao curvar-se-nos em gesto de auxílio, como instrumentos dóceis guiados por seu Criador; podem, então, “produzir” o que lhes transcende a causalidade, permitindo em verdade que Deus mesmo faça por meio delas ou por entre elas o que só Ele pode fazer.

Na visão dos céticos de nossos tempos, porém, a Criação não é regida por uma intencionalidade que lhe demarca a essência e, portanto, o agir e a harmonia interior próprios, isto é, não tem seus ditames internos estabelecidos pelo seu ser, causado não por cada criatura em particular, e sim pelo Verbo, portanto com uma significação e conteúdo independentes de sua suposta autonomia em absoluto determinadora; quando as criaturas são, existem, são nesse ato mesmo dóceis ao Criador; resistem aos ímpetos do nada sem qualquer esforço, simplesmente deixando-se transpassar pelas fronteiras do ser e ser o que são sendo. Essa é uma razão pela qual, fazendo-se cá abstração do ateísmo e materialismo implicados no ceticismo de forma geral, a vontade divina não interviria na criaturalidade; e, então, se se lhe aparta a dependência, o que sucede é que sua casualidade é limitada por si mesma e não pode haver elevação ontológica (acidental) das criaturas por um princípio divino. Daí que o conhecimento material e rigorosamente científico, matemático talvez, de aspectos do ser ou de alguns objetos — líquidos, energia térmica, movimento local — seja o único legítimo, supostamente, uma vez que as propriedades da água, por exemplo, nada possuem que lhes conceda imediatamente o poder de curar doenças gravíssimas e complexas repentinamente (por exemplo, a água benta — e isto é de fé — é meio antiquíssimo de se obterem milagres, de se afastarem demônios, etc.), e assim por diante.[1]     Do que foi dito concluo, pois, que a decadência espiritual de nossa época, a que me referi no início deste artigo, tem por algumas de suas causas o cientificismo e o materialismo, ao mesmo tempo em que uma má compreensão do que seja a Providência (para este último aspecto elucidar-se seria necessário desenvolver mais algumas coisas, porém no momento parece-me suficiente o que fica dito); não há dúvida de que todas essas perversidades idealísticas, ademais, estão intricadas umas às outras, mescladas de profundo, e então de algum modo se confundem.

Mas o que nos ensina a fé católica — e é isto que deve interessar o fiel verdadeiro —, a Santa Igreja a respeito dos Sacramentos, das criaturas como parte da economia salvífica?

Em primeiro lugar, Deus pode tudo, visto ser onipotente; é capaz, então, de necessitar, de certo modo, de carecer, de precisar de algo ou de alguém. Ele não tem em si nada que lhe exija recorrer a alguém para cumprir seus desígnios, mas a sua Bondade e Sabedoria o podem determinar quando bem queiram.

Pois bem, em todos os Sacramentos, diz o Espírito pela Igreja, encontra-se presente a mesma realidade: uma dispensação específica e imprescindível da graça divina, da semelhança de Jesus Cristo (que se nos atualiza mais e mais quando lhe somos dóceis), e essa indispensabilidade sacramental advém, também, duma mesma realidade, a saber, da nossa miséria e total insuficiência quanto à adesão firme no bem e permanência neste. Não são auxílios à parte, complementares às nossas forças; são o fundamento daquilo que podemos chamar em nós forças. Nosso eu não produz por si a própria força; não é independente ontologicamente nem operativamente: tudo lhe advém, em última instância, de Deus, e não da posse subjetiva da própria consciência e presença existencial objetiva. Chamar a Jesus Cristo, nosso tudo, de “Salvador” com fé verdadeira supõe aderir irrevogavelmente a essas verdades da nossa condição (por isso a humildade é fundamento das demais virtudes, inclusive, de certo modo, das teologais; poder-se-ia dizer até que a fé é a humildade elevada sobrenaturalmente diante da Revelação divina). Se nada lhe pedimos, se não buscamos seus socorros, se nosso porto-seguro somos nós mesmos, então nos tomamos praticamente por salvadores de nós mesmos à revelia de Deus, e disso provêm as superstições e práticas correspondentes. [2]

Sucede, então, que não há apenas uma forma de pedir ou merecer algo. Podemos pedir um objeto determinado, buscar adquirir um fim por súplicas explícitas, por persuasão, por ameaça ou constrangimento, por ações concretas etc., e cada uma delas será tanto mais eficaz quanto mais atingir a vontade daquele a quem se pede este bem concreto, quer seja incitando-o à prática da justiça, como quando se merece — e pode-se também “pedir” o que se merece —, quer seja fazendo-o buscar seu próprio interesse. Com Deus nenhuma das razões de aquisição de um bem solicitado mencionadas funciona, porque Ele não pode ser persuadido a fazer algo, nem obrigado, nem constrangido. Porém Ele pode, isso sim, querer conceder-nos determinados bens mediante meios pré-estabelecidos, preordenados por sua Sabedoria, pelos quais se possam merecer de certa forma esses bens. Ninguém merece um bem sobrenatural por si mesmo senão na medida em que participa dos méritos infinitos de Nosso Senhor Jesus Cristo; portanto, é apoiado nesses méritos que pode obter algo de ordem sobrenatural.

Por esses méritos, Deus concede-nos imensas graças, particularmente as que se referem à nossa salvação eterna, e, dada nossa natureza humana, inseparável da corporeidade, nossa fraqueza, ignorância e mesmo a solidariedade intrínseca e mútua que há entre todas as criaturas do universo criado em ordem a um mesmo fim, Ele determina que tais ou quais meios específicos proporcionarão graças de tais ou quais ordens, para tais ou quais fins. Para nutrir-se o homem precisa comer, não basta pedir comida ou avisar que está com fome; é pelo ato de alimentar-se que ele “merece” —pela estrutura natural de seu organismo —ser nutrido; quando pratica exercícios físicos anabólicos, “merece” fortalecer-se, adquirir músculos etc.. Portanto, o merecimento aqui toma um significado relacionado à causalidade dos seres, às infinitas relações de causa-efeito presentes em todas as coisas. Ele é como a resposta espontânea e universal das criaturas a todo ato comunicativo que se lhes dirija. Necessariamente um ato, uma ação, ainda que não consciente, produz um efeito predeterminado, ou seja, nunca é algo arbitrário, mas que está incluso já como possibilidade na essência daquele ente concreto antes mesmo que venha a existir.

Ora, Deus não amputa às criaturas sua natureza para agir sobre e mediante cada uma delas; Ele as criou e as governa pela natureza que lhes infundiu, digamo-lo assim. Isso é basilar na Teologia da Providência. Não haveria por quê, então, promover na primeira vinda de Cristo uma ruptura com essa estrutura fundamental da Criação e mesmo com o que fizera já antes ao povo hebreu, aos Profetas e Patriarcas; Ele sempre se valeu de instrumentos criados, físicos e às vezes até rudimentares para falar-lhes e agir sobre a história. E ademais, uma vez que Cristo ao encarnar-se e ressuscitar eleva em gérmen a Criação (à espera da consumação dos tempos e da glorificação da Igreja para atingir sua plenitude), porque a dignifica ao regá-la com seu Sangue e suor divinos, ao pisar seus campos, ao tocar suas águas — se Cristo tudo eleva e diviniza com a sua presença, então convinha que os fins sobrenaturais merecidos por Ele aos homens tivessem para sua obtenção concurso de meios naturais elevados sobrenaturalmente, mas conservando sua natureza. Desse modo é que a água é capaz de produzir sobrenaturalmente o que significa naturalmente quando usada no Batismo,[3] o óleo do Crisma é sinal visível da realidade espiritual que lhe corresponde tão nobremente enquanto instante da maturidade cristã, o pão e o vinho consagrados —e isto é sumamente importante aqui —tornam-se verdadeiramente Corpo e Sangue de Cristo para alimentar-nos espiritualmente… E assim, como é justo que a água natural nos lave de impurezas naturais, porque a relação de ambas as naturezas em contato promove esse ser devido a, esse mérito de quem recebe o efeito-resposta do objeto sobre o qual age, torna-se também justo que, tendo Deus disposto assim, entremos na vida divina por meio das águas batismais e sejamos lavados totalmente de nossos pecados, porque torna-se-nos devido isto pelos méritos de Cristo, Filho de Deus, que criou o céu e a terra e pode então elevar as relações criaturais a um novo patamar com o seu divino e sacrossanto poder.

Eis então consignadas algumas breves e singelas considerações a respeito dos Sacramentos. Agora, convido o leitor a trazer consigo tudo o que está dito à segunda parte deste artigo, na qual ficará claro o motivo do título seu, caso ainda não se tenha aflorado à mente.

II

Para alguns será consolador saber que a célebre sentença de Nosso Senhor segundo a qual “Tudo aquilo que fizerdes a estes meus pequeninos é a Mim que o fazeis” é de fé católica, ou seja, não pode ser negada sem que com isso se desmintam as Sagradas Escrituras e o ensino bimilenar da Igreja. Isso a princípio é evidente, por ter sido revelado explícita e ostensivamente pelo próprio Cristo de várias maneiras, porém as várias interpretações destoantes da ortodoxa e infalível doutrina católica que vemos hoje comprometem a vida do leigo simples e pouco instruído na fé, que facilmente pode ser tragado pelos tentáculos perversos da Teologia da Libertação, com os seus infindáveis extravios e absurdidades indignantes.

Segundo os teólogos da libertação, cuja visão de história é fundamentada na teoria da luta de classes de Karl Marx, portanto um modo reducionista, materialista, filosoficamente paupérrimo de enxergar os fenômenos históricos enquanto manifestação da ação individual e concreta — concomitantemente explicada por anseios superficiais e imaturos, por sentimentos de inveja e vontade de libertação ou contínuo aperfeiçoar-se (predominantemente no domínio do social) repressos pela operatividade da classe que supostamente molda a ação dos indivíduos a que convirjam aos seus objetivos próprios em lhes inculcando ideias que os justifiquem —, segundo esses teólogos, dizia eu, Nosso Senhor estava a lutar — blasfêmia horrível de ler-se! — na verdade contra as estruturas sociais corrompidas de sua época, em prol da libertação do povo opresso de então, dos mais pobres e “marginalizados”, quais sejam as mulheres, os doentes, as crianças, os pecadores, e não principalmente contra o reino de Satanás e pela salvação das almas, porque, entendendo-se esse reino maligno como eminentemente espiritual, dar-se-ia lugar a esquivar os olhos dos verdadeiros supostos reinos disseminadores do mal, que seriam aqueles com intuitos imperialistas e soberbos, nos quais o poder se concentrava na figura do tirano, do imperador, do rei e a hierarquia era um traço essencial.

Trata-se pois de uma teologia da qual decorre uma escatologia imanentista, sem profundidade espiritual, com ênfase excessiva e desordenadamente política, que crê ademais ser possível fazer desvanecer toda diferença ou hierarquia entre os homens, o que é por si um absurdo contra natura. Busca-se implantar um paraíso terrenal, um novo Éden neste vale de lágrimas — que é um lugar de provações e sofrimentos mais que de vãs esperanças mundanas — e extirpar toda pobreza, mas com a diferença de que o pobre não se há de tornar rico com relação a um outro a quem se possa oprimir ou violentar por conta de vínculos hierárquicos, nem o rico há necessariamente de tornar-se pobre e passar a ser o opresso da história — embora haja uma repulsa clara e pouco contida para com os ricos e os “detentores do poder”. Toda hierarquia é rejeitada; todos são iguais e basta haver a implantação de um regime solidário, social, político no qual todos sejam livres — ou não tanto… —, sob os mesmos princípios, para que essa igualdade se efetive na prática, e quem o faz é o Estado, ou os opressos unidos em coletividade, enfim, todo esse discurso decorre da filosofia marxista e dele está impregnada a Teologia da Libertação, com tais ou quais retoques a fazer.

De certo modo, então, a pobreza em sua potencialidade de estabelecer diferenças e hierarquias e carências é que é o mal, não o pobre; talvez os marxistas se contentassem em que todos fossem pobres, contanto que não houvesse diferença entre eles, ou ao menos providos de todo o necessário à subsistência e à manutenção de uma boa vida. Daí que a pobreza seja um mal a vencer, um mal que está em constante tensão com a ação revolucionária daqueles que lhe buscam atar as garras e instaurar um mundo “sem classes, sem diferenças e de amor fraterno”. Nessa concepção, é impossível que a pobreza seja vista como uma bênção divina em ordem à salvação, porque isto seria parte do discurso burguês, capitalista, que quer infundir à população conformidade com os seus males materiais. Aqui a religião se apresenta como instrumento da ação opressora, e portanto do Evangelho são filtradas todas as coisas que se lhe oponham, ficando apenas o que aparentemente venha a colaborar com os extravios de tão perversa doutrina.

Contudo, ocorre que, na ordem estabelecida pela Providência para a salvação das almas, a pobreza é, sim, uma bênção em muitos casos. Na verdade, é certo que muitos que se salvam sendo pobres provavelmente não se salvariam se fossem ricos; que muitos que se salvam sendo enfermos e sofredores, sendo humilhados e pisados, não se salvariam se nadassem em bens mundanos de fortuna e lisonjas dos grandes do mundo, do público em geral. E isso porque, dentre outras razões, a pobreza material, quando assumida consciente e humildemente, é um meio eficacíssimo de mais assemelhar-se, pelo auxílio da graça, a Jesus Cristo, que foi pobre; de tornar-se então pobre de espírito também, pelo desapego ao pouco que se tem mediante a adesão a que tudo o que se possa ter é nada, e que o nada que se experimenta, por doloroso que seja, traz em si lembrança da Cruz.

O Verbo assumiu uma condição humílima e ao extremo simples, dentre muitas razões, porque tal é o retrato verdadeiro da natureza humana; nada somos, todas as riquezas, impérios e poderes deste mundo não passam de ilusão. Que vejamos a Cristo, o mais perfeitíssimo dos homens, o Homem que mostra o Homem ao homem — e esta repetição de substantivos em letra maiúscula é proposital —, pobre e humilde, “aniquilado”, é qual se víramos a verdadeira face da humanidade em seu estado de pequenez e debilidade. Mas é claro que isso não se aplica a Nosso Senhor da mesma forma como a nós, porque, embora tenha o Verbo assumido “a condição de um escravo”, segundo o Apóstolo, sendo Deus a sua sacrossanta humanidade não padece da miséria do pecado, a única e verdadeira miséria, e mostra que o cume da perfeição reside na perfeita união com Deus, e não na união fugaz com os bens perecíveis deste mundo. Ora, a natureza humana em Cristo está perfeitissimamente unida à natureza divina; portanto, Cristo vem em estado de mostrar, diz Santo Tomás, também, o fim para o qual foi criado o ser humano e a concretização, em Si mesmo, desse fim, ou seja, a união divina, a visão beatífica — da qual a sua humanidade fruía. Nessa dinâmica de rebaixamento ao passo em que se é sumamente perfeito, com relação a nós se dá mais ou menos o contrário, porque é assumindo nossa condição de miséria que, caminhando nesta verdade — sendo pois humildes —, somos elevados pela graça.

É impossível assumir a verdade das coisas quando se têm a prepotência e a soberba de querer alterar a todo custo o estado das coisas e instaurar um paraíso terrenal.[4] Podemos fazer algo para que haja uma “sociedade mais justa”? Bom, sim, mas depende do que se entenda por “sociedade justa”. Certamente que a clássica definição de justiça, especialmente quando em seu ápice — justiça sobrenatural —, difere em muito da dos teólogos da libertação e mundanos em geral. O sofrimento, a dor, a amargura, a injustiça, a maldade, tudo isso são frutos de todas as épocas; passam as flores, mantêm-se impávidos os espinhos. O único modo legítimo de transformação da realidade não é pela imposição ou pela força de uma ordem utópica e pueril, senão que sua absorção pela rendição interior da alma humilde aos desígnios misteriosos da Providência. A docilidade é qualidade essencial dos Santos; a resistência, a inquietação, tudo isso advém da revolta, da soberba, da inveja. E se se luta justa e legitimamente contra a maldade no mundo, contra as injustiças — reais e gritantes, não o nego de forma alguma —, contra a ganância, deve ser sob a razão do amor a Deus e a Jesus Cristo, ao próximo por razão de Deus, e não da absolutação do “próximo” enquanto um fim em si mesmo. Por fim, deve-se lutar pelo bem com a fortaleza dos mártires, reconhecendo que o maior ato de coragem neste mundo é o martírio, ou seja, que o cristão vence morrendo, que o mistério da iniquidade parecerá de fato predominar e sufocar o verdadeiro Reino dos Céus até o Juízo Final, e que, tendo nós essa fé sobrenatural, não esperamos deste mundo o que ele jamais poderá dar-nos. Essa é uma resposta que ele é incapaz de produzir; sua causalidade é sumamente débil para tanto, e nosso coração é por essência voltado para o alto.

Dadas essas considerações, podemos passar a um âmbito mais teológico, que será o da Encarnação, conforme deixamos a perceber-se no início desta segunda parte.

O amor é o móbil fundamental de todo existente; tudo o que existe, existe por amor, e tudo o que por amor existe por amor subsiste. A permanência na existência é dada pelo amor que constitui a criatura em si mesma e que lhe dá unidade. A unidade tem por fundamento o amor, e por isso o amor unifica todas as coisas. Somente o amor é capaz de dirigir-se a um amado primariamente pelo Amado que lhe dá o ser; isto é, o amor criatural provém do Amor subsistente e, ao dirigir-se a este, que é sua fonte, estabelece-se uma relação de amante e amado. O amante ama o amado ao fazer tudo o que o amado quer, e esse tudo operativo ou ontológico é por si uma unificação êntica admirável. Nesse sentido, todas as coisas são movidas pelo Amor e, ao sê-lo, movem-se por amor ao Amor, porque tudo o que é busca o bem.

Portanto, sendo o amor tão dinâmico e unificador, podendo dirigir-se a todas as coisas sob uma razão única e basilar, suprema, pode ver em todas as coisas o Amado; e como aquilo a que se dirige também é movido pelo Amor e tem por fundamento o amor, não pode deixar de refletir de certa forma o Amor. Assim, vendo o Amado em todas as coisas, conseguem enxergá-las como elas são, porque o Amor, ainda que nesta vida não possa ser visto perfeitamente, sendo o Espírito Santo, digamo-lo claramente, ilumina todas as coisas obscuras e a Si mesmo na medida em que se dá à alma amante. Pois, dando-se à alma que ama, esta experimenta a presença do Amado, e essa experiência mística certamente tem um quê de conhecimento, não obstante suas trevas. São trevas consoladoras, é verdade, mas continuam sendo trevas; nesta vida o amor sempre tem um caráter de lançar-se ao abismo, de arriscar-se de todo para perder-se no abismo que é o Amado e, perdendo-se, encontrar-se a si mesmo. Não há outro modo de encontrar-se, a propósito…

E o que isso significa? — Que pela caridade teologal, que é o amor divino infuso em nós no Batismo, podemos amar todas as coisas propter Dei, ou seja, por razão de Deus, para Deus e em Deus. E por quê? Porque são amáveis, porém fundamentalmente pelo fato de serem amadas por Deus — o que as torna amáveis. E, sendo amadas por Deus e amáveis, é justo que as amemos, imitando assim a Deus, porque quem ama se assemelha ao amado em sua vontade — forma mais íntima de semelhança. E se amamos todas as coisas em Deus, enxergamos a Deus nelas, porque sempre a razão do nosso amor, sendo o Amado, faz que, efetivamente, este se torne presente em cada ato de amor.

Com isso, repito, pode o amor direcionar-se a um objeto ou ter por amado determinado objeto que não o seria, ­em certa ordem, senão em razão do Amado por excelência, e assim o amor recai tanto naquele a quem se direciona como, sobretudo, naquele por quem é dirigido. De certa forma, atinge a ambos. Isso, com efeito, enobrece, eleva o amor, porque o enraíza em seus fundamentos últimos, isto é, a inclinação natural da criatura ao bem e da pessoa espiritual à Bondade mesma. Todo outro amor é uma amputação dessa realidade, porque desordenado, uma vez que busca atingir um bem inexistente — um bem elevadíssimo ou a própria Bondade — ao direcionar-se a um bem real que não encontra fundamento em si mesmo. É como atirar no vácuo e felicitar-se por ter ferido o espaço.

A esta altura das nossas considerações — parágrafos atrás falei que entraríamos no âmbito da teologia da Encarnação, e eis que há tempos estamos detidos a falar de amor, porém que ato maior de amor que a Encarnação? — já podemos entender melhor como a Encarnação do Verbo dignifica a matéria, a própria humanidade e explica, mais profundamente, a sentença Tudo o que a eles fizerdes é a Mim que o fazeis. Com efeito, ela decorre da unidade da natureza humana, assumida pelo Verbo, redimida na Cruz e elevada na Ressurreição, tendo por fruto uma nova unidade, firmada agora no amor teologal, isto é, na caridade divina, pela qual se ama o homem por amor a Deus ao ver nele, tanto pelas luzes da razão como pelas da fé — principalmente pelas da fé aqui —, a imago Dei em um sentido mais crucial, porque já não é reconhecê-lo meramente como criatura ou efeito da Causa suprema e primeira de todas as coisas, senão que é enxergar não somente a imago Dei no homem — coisa tanto mais difícil quanto mais perverso seja o indivíduo — como o homem na Imago Dei, pois Cristo, segundo o Apóstolo, é “a imagem perfeita do Pai” (Imagem ou Verbo ou Luz ou Face subsistente e pessoal que exprime a Deus perfeitissimamente e que é o próprio Deus). Assim, uma vez que o Logos divino se encarna na natureza humana, pela fé enxergamos a Deus no homem efetiva e literalmente, no sentido mais radical, ou seja, vemos a Pessoa do Verbo com uma natureza humana real e concreta, portanto o Homem-Deus.

Mas se nós, em nossa condição de ignorância e pecado, víssemos a divindade manifesta de Cristo em seu esplendor quando de sua Encarnação, certamente que nos seria difícil ver o verdadeiro homem que Cristo é, a atitude interior perfeita e realmente querida por Deus que deve a criatura humana ter para com Ele, e sentir-nos-íamos talvez amedrontados — por soberba, por mesquinhez, por pusilanimidade, por receios infundados, seja como for — e pouco lugar haveria para uma fé humilde, sacrifical e algo obscura — a ênfase nos adjetivos é crucial aqui —, de forma a transparecer — para nós, cegos — pouco a humanidade — porque, ainda em nossa cegueira, na prática reconhecemos inúmeras vezes a debilidade intrínseca da nossa condição. Parece de fato uma tensão entre atitudes ou efeitos de alma opostos e pouco conciliativos, mas há de entender-se aonde havemos de chegar com isto.

Ora, não é verdade que enxergamos e experimentamos com mais clareza o infinito amor de Deus por nós ao ver que Ele, tendo-se feito homem, escondeu de nós a sua divindade, “assumindo a condição de um escravo”, de forma que não lhe reconhecêssemos a natureza divina senão pela fé, que supõe um sacrifício interior daquilo que nos é mais caro, quer dizer, do que enxergamos, do que tocamos e sentimos e que o amor-próprio como que nos obriga a admitir incondicionalmente segundo seus ditames e caprichos? “Essa é minha opinião, eu enxergo a coisa assim e não vou mudar portanto”, dizem altivamente muitos indivíduos hoje, mantendo o intelecto cativo de uma vontade rebelde e obstinada, incapaz de submissão pois.

Nada tão contrário à natureza da santidade, à qual todos somos chamados e pela qual refletimos e atualizamos, precisamente, como que um aspecto da face e vida de Cristo em nós. Não podemos atualizar em nós mesmos de forma perfeitíssima todas as potências da nossa natureza nem mesmo todo o campo ontológico da santidade, mas em Cristo e por Cristo uma fagulha da infinita pureza de Deus se nos atualiza, sim, no interior e, abrasando-nos desde este âmago, transforma-nos, à sua imagem, na sua imagem.

E o que é, mesmo, que constitui a santidade? Como nos assemelhamos a Cristo? — Pelo amor, pela sua natureza unitiva e assimilativa, porém nesse caso de um modo distinto: é Cristo que ama em nós e, ao fazê-lo, assemelha-nos a Ele pela ação do Espírito Santo, o qual nos envia à alma. Agora, para esse amor ser ordenado, deve-se fundar no princípio da ordem, que é a Verdade, ficando que o princípio radical do amor ordenado e consolidado ulteriormente, no coração do homem, é o reconhecimento inabalável das verdades primeiras e evidentes, nascentes duma abertura dócil ao ser. Em outras palavras, o direcionamento fundamental do amor se dá quando a inteligência, submissa à Verdade, se lhe curva de todo, não considera apenas o que lhe convém, mas, dócil, abre-se por completo — o que se refletirá mais abundantemente na vontade, não obstante já haver concurso desta em tal atitude interior.  E esse “curvar-se de todo” à Verdade é o que chamamos de humildade. Pois não basta conhecer a verdade da própria miséria, por exemplo, sem que se ­reconheça, isto é, que se viva de acordo com o que se , e não com o que se quer. Aqui, estabelece-se a hierarquia fundamental da realidade: ser, conhecer e amar, no âmbito da pessoalidade, e ser, luzir e aquecer, dito de forma outra.

Por mais que o amor seja nesta vida um salto no escuro, um confundir-se no mistério, quando se ama nunca isso é feito em absoluta cegueira, sem nenhuma luz prévia. Ama-se apenas o que se conhece. Daí que a humildade e a fé estejam tão interligadas e que a primeira seja necessária a que se tenha a segunda; quando é a vontade que domina, ela torna-se criadora do ser e, portanto, a intelecção lhe corresponde à ação impositiva; determina, pois, o que lhe convém não segundo o que é (pelo que se chega à luz das coisas), mas segundo o que se busca egoisticamente. Isso, naturalmente, é falta de submissão à Verdade, à ordem criada por Deus, e reflete a insurreição primeva do demônio. A partir daqui chegamos à razão pela qual a soberba pode contaminar, em princípio, todos os atos: na medida em que o que se faz se faz por um amor fundamentalmente desordenado à própria excelência, o valor de qualquer ação é desviado, transviado e corrompido. É como se se fizesse uma ofensa, uma irreverência ultrajante e violenta à nobreza intrínseca dos seres e das ações as mais sublimes pela imposição de uma outra verdade — o que se dá praticamente também, de certo modo — e, por conseguinte, de outra ordem.

Pela humildade, enxergamos as coisas tal como são e podem ser segundo Deus; pela soberba, como não são e como deveriam ser a nossos altivos olhos onipotentes e criadores… Assim, a humildade predispõe à misericórdia, porque enxergamos a miséria e mesmo bondade do outro como Deus as enxerga; por detrás da corrupção do pecado e das maiores degradações, podemos ver no próximo a dignidade intrínseca que possui todo ser humano pelo simples fato de ser o que é e, pela lamentável dissonância que há entre o que é atualmente e o que pode ser (aqui num sentido de circunstância ontológica), compadecer-nos de tudo isso e buscar suprir em algo essa miséria de alguma forma.

Com isso vamos aproximando-nos das conclusões, pois, com efeito, pela fé enxergamos no próximo a imago Dei de sua essência, pela apreensão do que é enquanto homem e ser, da similitudo Dei perdida pelas faltas graves ou não “restituída”, por assim dizer, quando não se foi ainda batizado, pela apreensão do que pode e deve ser pelo chamado divino universal à salvação e santidade. Em um caso e outro, podemos ver a Cristo pelo amor, pois sua Encarnação como que unificou a natureza humana num só chamado e, à que já foi lavada pelo Batismo, em um só corpo, seja atualmente — quando se é batizado e se está na Igreja —, seja pelo menos na medida em que todos são chamados a fazer parte da Igreja, ainda que não lhe estejam unidos ainda pela ausência do Batismo e da fé. Ao ver a miséria, lembramo-nos do Cristo que se aniquilou a si mesmo; ao ver a glória e a potência, do Cristo glorioso — embora nisso haja geralmente alguns influxos do nosso amor-próprio, não por isso nos é impossível semelhante visão —, e assim por diante.

Em um sentido mais eclesiológico, por certo que tudo isso ganha ainda mais peso, visto que nos batizados em estado de graça a Santíssima Trindade habita verdadeiramente; pelo Batismo somos realmente feitos ­alter Christus, membros do seu Corpo Místico, que é a Igreja, e portanto tudo o que fazemos a nossos irmãos fazemos a Cristo pelo concurso sobrenatural de méritos e ações existentes nesse organismo vivo e divino. E nesse sacro corpo muitos irmãos nossos vivem em miséria, quer material quer espiritual, sendo esta a mais grave, ainda quando estejam em estado de graça, mas lutando contra seus vícios e pecados leves, buscando com a ajuda da graça não sucumbir às tentações nem aos enganos do demônio.

E, por fim, agora em sentido espiritual, ascético-místico, chegamos a que todo amor é um ato de sacrifício nesta terra. Todo amor, para ser verdadeiro, deve ser essencialmente sacrifical. E o que isso significa? — Que, sendo nossa inteligência limitada e frágil, débeis nossas luzes, não podemos esgotar o ser das coisas para penetrar-lhes a bondade no mais profundo grau e amá-las como os anjos bons as amam; sempre nos deparamos com uma zona intransponível de obscuridade, com o mistério, porque tanto elas são misteriosas como nós somos pobres e carentes. Há sempre, em última análise, um salto no escuro a dar quando se trata de amar, porque devemos direcionar-nos, inclinar-nos aos seres mais perfeita e intensamente — ou moderadamente — do que ordinariamente as luzes que nos chegam no-lo permite.

Como amarmos os nossos inimigos sem esse salto no escuro, ainda quando não vejamos senão envolta em sombras espessíssimas a bondade naquele em quem parece haver apenas iniquidade e a mais abissal malignidade interior? A própria cólera, a instabilidade das nossas paixões, a oscilação das nossas imagens mentais conturbam de tal forma nossa razão que pouco ou nada conseguimos, em alguns casos, enxergar que são bons; escandalizamo-nos pelo que fazem e pela hediondez que vemos neles, porque parece ter vencido o Diabo naquelas desgraçadas almas. Para amá-los, e amá-los ordenadamente, segundo prometemos em nosso Batismo, é necessário um sacrifício de nossas luzes e um lançar-se humilde no abismático mistério da Verdade, porquanto o amor, na maior parte das vezes, não se consuma pela visão da bondade do outro, mas pela adesão à verdade de que no outro há bondade por Deus amá-lo e querê-lo e tê-lo criado.

Isso, se bem pensarmos, como que participa ou se assemelha do ato pelo qual enxergamos ao Verbo eterno de Deus padecendo sede ao meio-dia de um dia ensolarado, próximo a um poço, pedindo de beber a uma samaritana; cravado, escarnecido e “feito pecado” por nós — segundo a expressão do Apóstolo — a pender, a sangrar, a agonizar fria e dolorosamente numa ignominiosa cruz, instrumento de suplício dos mais vis criminosos da época; por fim, numa fração de pão, num pouco de vinho dentro de um cálice…

É-nos imprescindível, portanto, no ato da esmola sacrificar o nosso desejo de luz que nos tornaria fácil amar aquela pessoa jogada ao chão, suja, que não cheira bem porque há tempos não toma banho, que às vezes mesmo se encontra perturbada mentalmente quer pelos sofrimentos da vida quer pelo uso excessivo de álcool ou drogas… não conseguimos, falando propriamente, senão sentir certa repulsa instintiva em face daquilo que nos apresentam os sentidos, e como a imaginação, afetada pelo impacto negativo destes, é donde a inteligência tirará o material de sua reflexão, o espírito se inclina a considerar que naquele indivíduo não há bondade ou que é um “caso perdido”, ou nem consegue ver mais a sua humanidade ali. Isso é tanto mais patente quanto maior é a miséria daquele a quem se deve socorrer, pois ocorre em menor — ou nenhum — grau para com crianças inocentes, por exemplo. E, aqui, nos encontramos com aquilo que dissemos no parágrafo anterior: seria muito fácil amar a Cristo se o víssemos em sua glória e esplendor, em sua beleza majestosa e inenarrável, mas só por um sacrifício de nossas luzes — o que implica necessariamente a humildade cristã — é que podemos enxergar, obscuramente, na hóstia consagrada, nas cruzes dos altares o próprio Deus feito homem. E daí vem a fé, que tanto agrada ao Bom Deus e que se põe em exercício — ó Martinho Lutero! —, dentre outras formas, na oração, esmola e jejum — mas particularmente na esmola, ­pela qual ajudamos a Cristo no outro.

Pobres de espírito, pobres de matéria, seja como for, Tudo aquilo que a eles fizerdes é a Mim que o fazeis, e, sendo assim, Deus não nos há de recusar o que lhe peçamos se tudo o que Ele nos pede mediante seus pequenos e necessitados lho concedemos, porque Ele é justo e infinitamente bondoso, e é promessa escriturística:

Feliz quem se lembra do necessitado e do pobre, porque no dia da desgraça o Senhor o salvará.
O Senhor há de guardá-lo e o conservará vivo, há de torná-lo feliz na terra e não o abandonará à mercê de seus inimigos.
O Senhor o assistirá no leito de dores, e na sua doença o reconfortará.

(Sl 40).

Meu filho, não negues esmola ao pobre, nem dele desvies os olhos.
Não desprezes o que tem fome, não irrites o pobre em sua indigência.
Não aflijas o coração do infeliz, não recuses tua esmola àquele que está na miséria
não rejeites o pedido do aflito, não desvies o rosto do pobre.
Não desvies os olhos do indigente, para que ele não se zangue. Aos que pedem não deis motivo de vos amaldiçoarem pelas costas,
pois será atendida a imprecação daquele que te amaldiçoa na amargura de sua alma. Aquele que o criou o atenderá.
Torna-te afável na assembleia dos pobres, humilha tua alma diante de um ancião curva a cabeça diante de um poderoso.
Dá ouvidos ao pobre de boa vontade. Paga a tua dívida, dá-lhe com doçura uma resposta apaziguadora.
Liberta da casa do orgulhoso aquele que sofre injustiça. Quando fizeres um julgamento, não o faças com azedume.
Sê misericordioso com os órfãos como um pai e sê como um marido para a mãe deles.
E serás como um filho obediente do Altíssimo, que, mais do que uma mãe, terá compaixão de ti.

(Eclo 4).

A esmola ao pobre é como um sacramental: sempre produzirá seu efeito correspondente e realmente move o Coração de Deus a atender-nos e a ter-nos misericórdia, e apaga mesmo “uma multidão de pecados”, como diz o Príncipe dos Apóstolos. No mundo neopagão em que vivemos, a esmola ou é um curioso modo de perpetuar a pobreza, ou um ato de “empatia” e “solidariedade” puramente humanas — o primeiro substantivo é bem um distanciamento “neutro” e perverso da caritas cristã, saibam-no —, mas não uma escola de humildade, desprendimento, exercício mesmo da pobreza espiritual e despojamento dos bens deste mundo — porque não devemos dar apenas o supérfluo! —, isto é, um empobrecimento, um ato de assemelhar-nos com aqueles a quem Cristo se quis assemelhar para ao próprio Cristo nos parecermos.

Não será em vão nem presunçosamente que — quando feito e dito por humildade e fé verdadeiras, e não com espírito mercenário — se buscar ajudar o próximo para atrair a Misericórdia do Bom Deus a nós a que, imitando nós a Ele ao ajudá-lo o necessitado e aflito, Ele faça a nós o que fazemos aos outros, por ser quem Ele é: nosso Pai celestial de infinita ternura, amor e compaixão.


Notas:

 [1] Por meio do método e técnica científicos, a causalidade dos seres é aprimorada, porque são utilizados relacionando-se uns aos outros de modo a formar um todo causal tecnicamente homogêneo e artificial. A intencionalidade humana faz que a congruência das partes envolvidas numa técnica produza um efeito esperado que não se obteria apenas pela potencialidade causal duma só das partes, ou mesmo de todas sem alguma espécie de vínculo interno. Isso acontece, naturalmente, porque, conhecendo-se as propriedades das partes, podem-se inferir suas capacidades de suprimir a carência umas das outras.

No respeitante à causalidade instrumental superior que Deus concede às suas criaturas para além de sua natureza, ou valendo-se desta, Ele pode usá-las como ocasiões ou causas relativas (e instrumentais, como dito) de efeitos predeterminados por seus desígnios, porque têm potência obediencial, isto é, são abertas à ação divina de um modo distinto de como o são à ação humana, porque Deus pode atuar nelas desde sua essência e núcleo, elevando a sua causalidade sem precisar necessariamente se sujeitar a seus limites internos e aos ditames relacionais das partes de um todo causal.

Na medida, portanto, em que a Ciência Moderna estabelece limites à causalidade material, instrumental e natural de certos objetos da natureza ela se opõe legitimamente à superstição; no entanto, ao apartar a natureza da amorosa e sábia ação divina para além das suas leis ordinárias por desígnios providenciais e sobrenaturais, ela — a Ciência —, se não cai na superstição (excessiva atribuição causal a um ser), peca contudo por carência da devida atribuição de capacidade obediencial das criaturas ao Senhor.

Não é porque o soberbo homem pode desobedecer a Deus que ele deve atribuir sua rebeldia e insubmissão às criaturas inanimadas, considerando-as rigorosamente inflexíveis e delimitadas em si mesmas; nesse sentido, o rigor científico desordenado ordinariamente não é senão reflexo de um espírito e coração endurecidos: o homem não se deixa transformar por Deus, não permite que Ele aja em seu coração, e considera que também as demais criaturas participam de tão nefanda insurreição.

[2] Enquanto unidade ontológica formalmente sedenta de perfeição e incapaz de encontrar em si, de forma autônoma e arbitrária, a fonte adequada donde a haurir para repousar finalmente, o homem é, portanto, um ser inquieto e em busca contínua pelo bem. Não a encontrando em si, vai e busca onde quer que lhe pareça possível encontrá-la: então é que, longe da fé verdadeira, o mundano a busca em superstições e ídolos. Crê, em revolta oculta contra a Providência, que os horóscopos podem desvendar-lhe o futuro, ou que um amuleto contém em si energias capazes de livrá-lo de determinado tipo de mal, e assim por diante.

Mas, além disso, o leitor pode estar perguntando-se a respeito do que distingue então as superstições neopagãs dos sacramentais cristãos, e, como tratar em profundidade isso demandaria um outro artigo, tome-se como matéria de reflexão o lado negativo das superstições, que dizer, certos atos ou objetos que são capazes de produzir males e cuja evitação, consequentemente, é capaz de evitá-los. Isso não é atribuir ao demônio ou às forças da natureza uma capacidade de dano irreversível para além daquilo em que consiste o verdadeiro mal, quer dizer, o mal moral? Assim, os danos físicos produzidos por causas improporcionais a eles assumem um papel excessivamente importante e atuação preternatural no mundo se concentra predominantemente neles, sem visar ao exercício do pecado primariamente, e assim também a relação com o cosmo físico seria tensa e perigosa, com numerosos escolhos preternaturais para a existência.

[3] Se se me permite a expressão, é como se a água estivesse em “estado de graça”, obediente às moções divinas. (A propósito, talvez seja uma boa matéria de reflexão pensar que até o Mar Vermelho, há milênios, é converso e fiel a Deus, “e você, não, apenas a adiar sua conversão”…).

[4] Novamente, se entramos nas armadilhas da heresia que cá estamos combatendo, suporemos que estamos sendo “passivos” e “covardes” diante das injustiças e admitindo-as sob pretextos religiosos, mas não me estenderei sobre por que isso é evidentemente uma percepção cega.

Sobre Enzeo Emmanuel dos Santos

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