Foi publicado um documento da Santa Sé, categorizado como Declaração autorizada e assinada pelo Papa, intitulada “Fiducia supplicans” (=FS).
Este documentou gerou – não sem razão – um mal-estar geral nos católicos (pastores e leigos) que amam a Igreja de Cristo, Una, Santa Católica e Apostólica.
Por semelhança temática, FS tem seu antecedente mais imediato em um responsum da Doutrina da Fé de 22 de fevereiro de 2021 redigido pelo Cardeal Ladaria e assinado pelo Papa Francisco. Diante da pergunta “A Igreja dispõe do poder para transmitir a bênção a uniões de pessoas do mesmo sexo?” A resposta dada foi NEGATIVAMENTE. E disso se segue uma nota explicativa que dá as razões para a referida negação.
Agora nos encontramos com um documento onde se amplia a possibilidade de transmitir a bênção não só a pessoas com tendência homossexuais, mas a adúlteros impenitentes.
Deste documento, só são recuperáveis os 11 primeiros números que reúnem “a seu modo” a doutrina tradicional do matrimônio e os ritos litúrgicos a ela relacionados. Contudo, a partir do número 12, começa a suceder uma cascata de imprecisões, ambiguidades, emotivismos que beiram a heresia, se é que não ultrapassam em algum ponto.
Antes de adentrar no conteúdo de FS, é preciso explicar algumas questões sobre a teologia da bênção e da súplica:
- Estamos situados no campo dos sacramentais, que são uma ação litúrgica que, construída a modo e imitação dos sacramentos, foram instituídos pela Igreja e recebem sua eficácia da fé e da oração da Igreja.
- Um sacramental pode ter ou não ter um ritual próprio, dado que, como a eficácia vem da oração da Igreja e foi instituído pela mesma, nem sempre é necessário um ritual expresso ao qual esteja ligada a eficácia sacramental. Por isso, independentemente de se ter ou não um ritual em mãos, uma bênção a uma pessoa ou uma bênção a um objeto, desde que sejam invocativas, serão sempre válidas.
- Entre os distintos sacramentais, destacam-se as bênçãos que podem ser invocativas ou constitutivas:
a) Por bênção invocativa entendemos aquelas que pedem uma graça de deus sobre uma pessoa ou um objeto sem pretender alterar sua natureza ou essência (por exemplo, a bênção de uma casa ou a bênção de um filho);
b) Por bênção constitutiva entendemos a invocação a Deus para que derrame uma graça sobre uma pessoa ou um objeto com o fim de de alterar sua essência, sua natureza ou seu significado (por exemplo, a profissão religiosa ou a bênção de altar).
- Assim, a diferença básica sobre a eficácia do sacramental é que se requer a fé e a boa disposição do sujeito ou a idoneidade do objeto que se benze e a fé do ministro que celebra a ação sacramental, visto que é uma eficácia ex opere operantis e não ex opere operato própria dos sete sacramentos.
Esclarecido esses pontos, em FS 12 lemos: “nos levaria a pretender para uma simples bênção as mesmas condições morais que são pedidas para a recepção dos sacramentos”. Aqui está o primeiro erro, já que para as bênçãos são necessárias disposições pessoais que não são exigidas para os sacramentos em vista da eficácia sacramental. Por exemplo, para batizar uma criança não se requer nem a fé da criança nem a consciência da criança, enquanto que para abençoar uma pessoa se requer a fé da pessoa que vai ser abençoada.
Em FS 23 lemos: “quando estas expressões de fé são consideradas fora de um quadro litúrgico, encontramo-nos num âmbito de maior espontaneidade e liberdade”. Este é outro erro: não existe uma bênção fora de um quadro litúrgico, porque toda bênção é um sacramental da Igreja, uma actio liturgica’
E, portanto, este número conduz a um segundo erro que encontramos no ponto seguinte, o FS 24: “Consideradas a partir do ponto de vista da Pastoral popular, as bênçãos são valoradas como atos de devoção que encontram seu lugar próprio fora da celebração da Eucaristia dos outros sacramentos”. O erro, novamente, é considerar as bênçãos como um gesto de piedade popular e não como o que realmente são: uma ação litúrgica, ação sagrada mesmo quando sua demanda seja suscitada pela piedade popular e simples de um leigo ou por superstição (neste caso, será o ministro quem deve julgar e reconduzir a intenção do secular).
Os números 25 e 35 abrigam os tópicos típicos deste pontificado: “a Igreja também deve evitar sustentar sua práxis pastoral na rigidez de alguns esquemas doutrinais ou disciplinares…” (25) e “portanto, a sensibilidade pastoral dos ministros ordenados deveria também ser educada para realizar espontaneamente bênçãos que não são encontradas no abençoário” (35). Em síntese, que para evitar a rigidez (fidelidade) se deve cair no liberalismo litúrgico e na desobediência condenada por SC 22&3. Lembrando que, no caso de não ter ritual em mãos para transmitir uma bênção invocativa, será válida qualquer fórmula que não esteja desligada da fé da Igreja.
Em FS 26, manipula-se a nota doutrinal de 2021 já citada. E em FS 28, argumenta-se usando a bênção dos anciãos como justificativa de que se pode abençoar as pessoas com o fim de que não se sintam excluídas. É uma argumentação forçada e descontextualizada.
Os números 30 e 32 são um veneno relativista e sentimental deletério: “a prudência e a sabedora pastoral podem sugerir que, evitando formas graves de escândalo ou confusão entre os fiéis, o ministro ordenado se una à oração daquelas pessoas que, mesmo que estejam em uma união que de modo algum pode nivelar-se ao matrimônio, desejam encomendar-se ao Senhor e à sua misericórdia…” (30) e segue no 32: “é esta uma bênção que, embora não esteja inclusa em um rito litúrgico (erro teológico já indicado), une a oração de intercessão à invocação da ajuda de Deus àqueles que se dirigem humildemente a ele…”
Mas será FS 31 onde se culmina a pretendida abertura: “No horizonte aqui delineado, coloca-se a possibilidade de bênção de casais em situações irregulares e de casais do mesmo sexo cuja forma não deve encontrar nenhuma fixação ritual por parte das autoridades eclesiásticas para não produzir confusão com a bênção própria do sacramento do matrimônio. Nestes casos se concede uma bênção que não só tem um valor ascendente, senão que também é a invocação de uma bênção descendente do próprio Deus sobre aqueles que, reconhecendo-se desamparados e necessitados de sua ajuda, não pretendem a legitimidade de sua própria situação, senão que rogam que tudo o que há de verdadeiro e bom e humanamente válido em suas vidas e relações seja investido, santificado e elevado pela presença do Espírito Santo…” Este parágrafo é o sumidouro de todos os erros antes mencionados, porque:
a) Uma bênção invocativa não necessita ritual.
b) Toda bênção é ato litúrgico.
c) Deus não pode abençoar uma situação de pecado.
d) Não pode derivar-se nada bom de uma situação moralmente má ou contra-natura.
Se o que se pretende é fazer que essas relações extra-matrimoniais “possam amadurecer e crescer na fidelidade à mensagem do Evangelho, libertar-se de suas imperfeições e fragilidades e expressar-se na dimensão sempre superior do amor divino”, então devem ser acompanhadas até o SACRAMENTO DA PENITÊNCIA, que é o próprio sacramento instituído por Nosso Senhor para remediar e curar estes casos, estas feridas da alma.
Em FS 38 lemos: “Por esta razão não se deve nem promover nem prever um ritual para as bênçãos de casais em situação irregular, mas tampouco se deve impedir ou proibir a aproximação da Igreja em toda situação na qual se peça ajuda de Deus através de uma simples bênção. Na oração breve que pode preceder esta bênção espontânea, o ministro ordenado poderia pedir para eles a paz, a saúde, um espírito de paciência, diálogo e de ajuda mútua, e também a luz e a força de Deus para poder cumprir plenamente sua vontade”. Encontramos agora uma contradição: por um lado, não pode haver ritual com fórmulas fixadas (já dissemos que não é necessário numa bênção invocativa), mas, por outro, se insinua que deve haver palavras e gestos (verba gestaque), os elementos próprios de toda ação litúrgica e sacramental. E o que se deve pedir nessa “oração breve que pode preceder a esta bênção espontânea” são coisas que podem ser pedidas para qualquer pessoa sem dificuldade, quando o que realmente necessitam essas pessoas é que a graça de Deus lhes faça ver sua situação de pecado e lhes inspire uma perfeita contrição que lhes leve a uma mudança de vida (mas isso já não se pode pedir, não é moderno).
Em FS 39 lemos: “precisamente para evitar qualquer forma de confusão ou de escândalo, quando a oração de bênção for solicitada por um casal em situação irregular, embora seja conferido à margem dos ritos previstos pelos livros litúrgicos, esta bênção nunca será realizada ao mesmo tempo que os ritos civis de união, nem tampouco em conexão com eles. Nem sequer com as vestimentas, gestos ou palavras próprias de um matrimônio. O mesmo se aplica quando a bênção é solicitada por um casal do mesmo sexo”.
No fundo, este parágrafo desacredita todo o documento tanto em seu conteúdo quanto em sua intenção, e reduz as situações irregulares a algo vergonhoso, mas tolerado, porque não resta mais remédio (pobrezinhos).
O documento parte, como já estamos acostumados, do hiato entre Teologia e pastoral, de um positivismo jurídico frente à lei natural, o que o torna pobre e injusto, porque não ajuda as almas à conversão e a viver o amor de Deus e do amor de Deus. Admite-se o pecado como um status quo permanente e se rende ante a impossibilidade de sair dele. A graça de Deus fica anulada ou, no máximo, se apresenta como autoajuda ao homem pecador condenado a viver em seu pecado sem possibilidade de reverter a situação.
Erros teológicos, litúrgicos e pastorais cujos efeitos nocivos veremos a curto prazo.
Deus perdoe seus autores e o seu assinante.
Fonte: Desde mi Campanario