IMPORTÂNCIA DA PRUDÊNCIA
Conta Cassiano que antigos solitários vieram um dia procurar o grande santo Antônio para que lhes ensinasse o meio de adquirir a perfeição. Sua conferência prolongou-se desde a tardinha até o dia seguinte. Procuravam qual seria a virtude ou a observância mais capaz de preservar os solitários dos artifícios do demônio e de levá-los mais direta e seguramente às culminâncias da perfeição. Uns aviltaram as vigílias e os jejuns, outros a solidão no fundo de um deserto, outros, ainda, as obras de caridade. A noite ia assim passando velozmente quando o bem-aventurado Antônio, tomando finalmente a palavra, disse: «Todos estes meios são necessários a quem tem sede de Deus; porém não são infalíveis, pois temos visto religiosos observadores destas santas práticas, caírem e chegarem a um fim deplorável. É que careciam de discrição: não souberam adquirir esta virtude que se mantém entre os extremos, e ensina aos religiosos a acompanharem a estrada real sem se desviarem à direita, caindo nos excessos do fervor ou nas loucuras da presunção, nem à esquerda, deixando-se arrastar ao desânimo. Esta discrição é o olho e a luz de que fala o Salvador no Evangelho : «A lâmpada do teu corpo é o olho. Se o teu olho é são, teu corpo todo estará na luz; mas, se o teu olho é viciado, teu corpo todo estará nas trevas.» Quando a discrição assinala com seu selo virtudes e ações do homem, a alma vê perfeitamente tudo o que deve fazer; mas, se este olho desempenha mal seu papel, isto é, se a alma carece de juízo, ela se deixa surpreender pelo erro e pela presunção.
«Feliz o homem que achou a sabedoria e adquiriu a prudência… à sua direita tem uma longa vida, e à sua esquerda, a riqueza e a glória; seus caminhos são caminhos agradáveis e suas sendas, sendas de paz.»
Os homens, com razão, apreciam muito a prudência. Cada um a reivindica para si, pois, como faz observar certo escritor chistoso, todos se queixam da memória e ninguém do juízo. A prudência natural, um juízo reto e seguro, representa já uma qualidade preciosa; mas, quanto mais excelente é a prudência sobrenatural, que é uma participação da sabedoria divina! Deus, na sua infinita sapiência, propõe-se, em todas as suas obras e no governo da sua Providência, um fim excelente, sábio, santo, verdadeiramente digno d’Ele: a comunicação de seus bens e a manifestação de seus divinos atributos. Para alcançar este fim, escolhe os melhores meios. No céu, onde veremos desvendado, como num livro aberto, todo o plano de Deus, admiraremos esta sabedoria. A prudência sobrenatural faz também a alma fiel escolher um fim sábio, santo, digno de Deus, e proveitoso para ela própria, e os meios mais seguros para alcançá-lo. É esclarecida pela fé, pois esta nos ensina qual nosso destino: a união eterna com Deus, a posse beatifica de Deus, e quais as veredas que a Ele conduzem. É excitada pelo amor, ou antes, como diz são Francisco de Sales, «a prudência é o amor que escolhe o que melhor lhe convém para se unir a Deus e rejeitar o que lhe é nocivo.»
A NATUREZA DA PRUDÊNCIA
A prudência mundana, que é antes esperteza e habilidade, visa fins humanos, satisfações passageiras. Jesus disse: «Os filhos do século são mais hábeis do que os filhos da luz.» Ah! estes enganam-se procurando os falsos bens; mas, para adquiri-lo, entram em acordo, não poupam sacrifícios, sabem refletir e calcular, recorrem a processos ardilosos, fazem despesas oportunas, quando destas lhes podem advir vultuoso lucros. Quantas vezes, infelizmente, as almas cristãs não patenteiam esta habilidade para granjear os bens imorredouros! Não têm a prudência sobrenatural.
Esta faz entender que os bens eternos são os únicos dignos de nossas aspirações; incute-nos a convicção de que, fazer um esforço penoso, mas passageiro, condenar-se a um sacrifício, que custa mas não dura, equivale a renunciar a um prazer terreno, efêmero como um sonho, para preparar-se, no céu, um gozo puríssimo, inenarrável, infindo. Mais ainda, dá a certeza que esta ação, podendo renovar-se cada dia e cem vezes por dia, a alma generosa (e ela só, adquire para a eternidade imensos cabedais de felicidade.
A prudência sobrenatural guia a alma na escolha dos meios para bem servir a Deus e amontoar méritos para o céu. Dirige todas as demais virtudes, ensinando a maneira de praticá-las segundo as circunstâncias, apontando o que se deve fazer, omitir, ou diferir. A virtude ocupando quase sempre o meio entre dois extremos, faz discernir este justo meio. «Ensina-nos a tratar nosso corpo com discrição, evitando com igual cautela o excesso de delicadeza e o excesso de rigor, não lhe recusando o necessário, mas não lhe dando o supérfluo.»
A disposição natural para tudo ponderar e agir com discernimento não é a mesma em todos. Há pessoas que têm inteligência viva, talentos apreciáveis e muito pouca sensatez, outras têm uma inteligência menos penetrante e um grande bom senso . Mas pode-se e deve-se aperfeiçoar o juízo e fazer esforços por tornar-se o servo fiel e prudente, que tanto agrada ao Senhor.
EXERCÍCIO DA PRUDÊNCIA
Para agir com prudência impõem-se três deveres: refletir e procurar os meios; encontrados estes, julgar qual o mais oportuno; finalmente tomar uma decisão firme.
«Meu filho, não faças nada sem refletir e não te arrependerás de tuas ações.» Mas esta circunspecção, esta indagação dos meios a tomar, somente dá resultado quando se lhe acrescenta a oração. Sendo a sabedoria humana sempre muito restrita e propensa ao erro, a alma prudente, desconfiada de si, nunca deixa de implorar as luzes divinas. Ao mesmo tempo acautela-se contra os defeitos seguintes:
- a precipitação, que falta ao primeiro dever da prudência, importando-se pouco de refletir, considerar as circunstâncias, procurar os meios mais convenientes;
- a inconsideração, que, mesmo depois de refletir e pesquisar, formula um juízo sem levar em conta as circunstâncias conhecidas e as pesquisas feitas;
- a inconstância, que, depois de tomar uma decisão sábia, leva a mudar de ideia sem razão suficiente;
- enfim, a negligência, que faz pouco caso do plano reconhecido como o melhor.
A maioria das vezes, estes defeitos se manifestam porque a vontade transviada perverte o entendimento. Com efeito, a vontade deixando-se influenciar por suas simpatias ou antipatias, ou, mais desgraçadamente ainda, por suas paixões, não gosta do que contraria suas tendências; impede a inteligência de julgar de modo são, de discernir o que é melhor e procurar o meio mais acertado para alcançar um fim bom. Para bem julgar, é mister manter uma perfeita imparcialidade, conservar seu coração livre de qualquer apego desordenado. Toda paixão não refreada arrasta a tolices, a imprudências: os anciãos, cuja história nos traça Daniel, foram inábeis acusando Suzana; Sansão foi imprudentíssimo com Dalila. O homem apaixonado quer julgar favoravelmente as pessoas e as coisas que lisonjeiam sua paixão e desfavoravelmente tudo quanto a contraria; assim cai ele em muitos erros, sobretudo em seu modo de proceder. Não sabendo dominar-se, age muitas vezes com precipitação, como se fosse privado da razão. «O insensato solta as rédeas à sua paixão, mas o sábio a domina.» O homem indolente ou desleixado não comete menos erros para poupar-se a incômodos.
Desde que a maior parte de nossos erros, imprudências e inépcias nascem de nossas paixões, devemos nos acautelar contra todo e qualquer movimento desordenado de nossa alma e evitar de tomar decisões no estado de desassossego, mas sempre acalmar-nos e não agir senão na posse plena e serena de nós mesmos.
Nosso Senhor recomenda a seus discípulos que unam à prudência da serpente a simplicidade da pomba. São Francisco de Sales explica muito bem como, na prática do amor para com Deus, estas duas qualidades se confundem. «O amor humano, – diz ele, refere-se ao que procura os bens naturais – anda por todos os lados em busca dos meios para alcançar o que deseja e, por isso mesmo que estes meios são diversos e ele, muitas vezes, os desconhece, desenvolve uma solicitude incrível. Mas o amor divino sabendo que, para conseguir o que ama, o principal meio é amar, diverte-se simplesmente amando bem… eis porque é simples e prudente… As lebres, as raposas e os veados, tímidos entre os animais, são dotados de uma prudência tão diferente e de ardis tão numerosos que é uma maravilha. O leão, pelo contrário, o elefante e o touro não têm artifícios e sua prudência consiste na sua coragem e na sua força. Assim são os filhos de Deus: sua sabedoria é simples e franca, porque o amor que os dirige, havendo sujeitado tudo à obediência, obriga-os a caminharem de acordo com ele… A prudência amorosa abandona-se inteiramente a Deus; roga-O, cumpre fielmente o que Ele manda, mas espera do seu amante o feliz êxito; procura o reino de Deus e sua justiça, e o resto lhe é dado por acréscimo.»
Nas nossas relações com Deus, a prudência é, pois, confiança e coragem, retidão e simplicidade. Com os homens, observa ainda o santo doutor, é preciso andar com maior previdência e tomar sábias precauções. Mas os passos a dar, as indústrias a empregar, «é o amor que as sugere admiravelmente. Vede a prudência de Natan e com que habilidade ele surpreende a David; não ousando dar-lhe a navalhada da correção, exorta-o a tomá-la por si mesmo, de sua própria mão, e, incitando-o o leva a gravá-la bem fundo no peito do seu pecado e assim cura-o. Considerai a prudência de José para salvar o Egito da fome, e a prudência de São Paulo no sermão que prega aos Atenienses, com que sabedoria ele se vale do ensejo que lhe proporciona uma inscrição colocada em um dos altares dedicados aos seus ídolos para anunciar-lhes o verdadeiro Deus.» Deu prova de sabedoria ainda maior, quando, arrastado perante o Sindrério disposto a condená-lo, soube, com muita perícia, dividi-lo dizendo: «Sou fariseu, filho de fariseu e é devido à esperança e ressurreição dos mortos que me julgam.» Do mesmo modo, quando um juiz iníquo, para agradar aos inimigos de São Paulo, mostrou-se disposto a fazê-lo reconduzir a Jerusalém onde sua vida teria perigado, este apóstolo apelou para César, e assim obrigou seus adversários a levá-lo a Roma, onde desejava ardentemente pregar o evangelho.
Um dos principais exercícios da prudência consiste em velar, com grande cuidado, sobre suas palavras. «Os lábios dos insensatos só proferem estultícies; mas, as palavras dos homens prudentes são pesadas na balança.» «Faze uma balança e pesos para tuas palavras, uma porta e um ferrolho para tua boca.» «Se vires um homem pronto no falar, espera mais de um insensato do que dele.» «Aquele que refreia suas palavras, possui a verdadeira ciência, e aquele que tem calma de espírito, é homem de inteligência. O próprio insensato, quando cala, é tido por sábio.»
A prudência também ensina a consultar os homens de bom conselho. «O caminho do insensato é reto a seus olhos,» diz o autor inspirado, o que significa que ele acha sempre seu proceder perfeito e está cheio de confiança em si; «mas, o sábio ouve os conselhos.»
O homem prudente não perde as boas ocasiões, e não compromete por uma lastimável indecisão os interesses a seu cargo. Evita também, com o máximo cuidado, a precipitação, e nunca conclui um negócio importante sem previamente deixá-lo amadurecer com toda a paciência. São Vicente de Paulo era um modelo desta prudência, procedendo sempre, nos negócios graves, com sábia lentidão. Ao superior de uma das suas casas escrevia: «O Sr. objeta que sou muito vagaroso e assim, às vezes, espera seis meses por uma resposta que se poderia dar dentro de um mês; entretanto, as ocasiões se perdem e tudo fica na mesma. Respondo-lhe, caro Sr., que, de fato, levo muito tempo para responder e fazer as coisas; entretanto, não vi negócio algum estragado pelo meu atraso, mas tudo tem sido feito em seu tempo, com as vistas e cautelas precisas. Não obstante isso, faço o propósito de, no futuro, responder-lhe quanto antes, depois de considerar a coisa diante de Deus… O Sr. corrigir-se-á, pois, de sua pressa em resolver e fazer as coisas; e, do meu lado, esforçar-me-ei por me emendar de minha lentidão… Examinando calmamente todas as coisas principais que se tem dado nesta Companhia, parece-me a mim, e é fácil demonstrá-lo, que, se fossem feitas antes, não teriam sido tão bem feitas. Isto digo de todas, sem excetuar uma só.»