Embora fossem esperados, e graças à antecipação feita pela própria Messa in Latino (ver aqui e aqui), em grande parte o conteúdo já era conhecido, mas não o seu tom, o Motu proprio Traditionis Custodes e a carta que o acompanha suscitaram uma enchente irreprimível de sentimentos negativos no coração de quem vive sua vida espiritual ao ritmo da liturgia tradicional.
Trata-se de uma violenta inquietação que é inútil descrever, porque todos os nossos leitores já o conhecem bem, posto que na verdade a experimentaram; e devemos reconhecer que a emotividade ainda está presente e dominando. Por causa disso, o autocontrole espiritual deve ser ativado imediatamente. Ainda que sintamos que somos vítimas de uma injustiça, responder com injúria, ou algo pior, não é uma atitude cristã; assim como não é cristão se deixar seduzir pelo desespero ou pela indiferença.
Não podemos esquecer que a Igreja sempre suplicou ao Senhor dizendo: «ut Domnum apostolicum et omnes ecclesiasticos ordines in sancta religione conservare digneris, te rogamus, audi nos». Portanto, o fato dos Domnum apostolicum et omnes ecclesiasticos ordines terem se desviado da sancta religione – sem que com isso a Santa Igreja caia, pois ela permanece indefectível e não migrou para comunidades paralelas, alternativas ou subsidiárias – é uma dolorosa eventualidade contemplada desde tempos imemoráveis.
Portanto, quando a emoção estiver retraída dentro do limite governável, podemos e devemos tentar fazer uma análise racional desta triste novidade; e também tentar perceber o que se pode fazer nessa situação criada, porque é certo que não vamos nos acomodar num morno “foi bom enquanto durou”.
Um primeiro nível de análise, e de reação, se põe no plano jurídico. Devemos compreender bem a amplitude e o limite do Motu proprio, que já num primeiro exame parece apresentar algumas dificuldades técnico-editorias sistemáticas, o que permite fazer um bom combate defensivo. Com efeito, é oportuno e correto, absolutamente correto, que especialistas e canonistas sublinhem quais são e quantas são as áreas de proteção que ainda temos. Contudo, sem pensar que se pode resolver todos os nossos problemas desta maneira, pois sabemos que, nesta triste fase da história da Igreja, o direito já não conta, é quase nulo, principalmente na máxima sede; o que conta é somente a força e o medo promovidos pelos poderosos. Por isso, não tenhamos ilusões.
Podemos então descer ao plano da dinâmica “política”, das explicações dadas expressas ou implicitamente, do não dito ou dito de forma pouco convincente, da análise não somente e nem tanto da mente do legislador abstrato, mas sobretudo da intenção e da moção reais do legislador histórico. Ou seja: além das normas, vamos também nos concentrar na carta que as acompanha. E também sobre as declarações “confessionais” do modo de pensar litúrgico que inspiraram clara e inequivocamente o Motu proprio.
Algumas considerações, portanto, in primis sobre a Carta. Nela nos é explicado que João Paulo II e Bento XVI concederam a faculdade de usar o Missal de 1962 para “‘facilitar a comunhão eclesial àqueles católicos que se sentiam vinculados a certa forma litúrgica precedente’, e não a outras”. Foi dito “não a outras”, porque é um ponto importante: O Summorum Pontificum teria sido emitido apenas para recuperar aqueles lefevbrianos endurecidos ou velhos nostálgicos quaisquer. Com efeito, para a carta “são evidentes a todos os motivos que levaram São João Paulo II e Bento XVI a conceder a possibilidade de utilização do Missal Romano promulgado por São Pio V, e publicado por São João XXII em 1962, para a celebração do Sacrifício Eucarístico. O corpo docente (…) foi motivado sobretudo pelo desejo de favorecer a recomposição do cisma causado pelo movimento liderado por Dom Lefebvre”. Por isso é fácil concluir (pois está dito quase explicitamente), uma vez falhado o objetivo “reconciliatório”, desaparece a necessidade de permissão.
Infelizmente, as peças não se encaixam. Já foi amplamente notado pela blogosfera (a internet não perdoa…) que Bento XVI, em “Últimas conversas”, ao ser indagado por Peter Seewald (Garzanti, 2016, pp.189 ss), esclareceu a questão: “a reabilitação da missa antiga é muitas vezes interpretada como uma concessão à Fraternidade Sacerdotal São Pio X“, então ele responde (o destaque é nosso):
Isso é absolutamente falso! Para mim era importante que a Igreja preservasse a continuidade interna com o seu passado. Que o que antes era sagrado não se tornou de repente uma coisa errada. O rito deve evoluir. É por isso que a reforma foi anunciada. Mas a identidade não deve ser quebrada. A Fraternidade Sacerdotal São Pio X funda-se no sentimento de que a Igreja a havia renegado. Isso não deveria acontecer. Minha intenção, todavia, como eu disse, não era de natureza estratégica: eu me importei com a coisa em si
E quanto à intenção substancial do Papa Ratzinger (“a coisa em si”)? Se isso tivesse sido devidamente considerado, justificar a Traditionis Custodes teria sido mais difícil? Bastaria confiar em outra coisa, nas circunstâncias posteriores que teriam inclusive forçado o Papa Francisco a intervir? Circunstância estas que consistiriam no fato de que: “é cada vez mais evidente nas palavras e nas atitudes de muitos a estreita relação entre a escolha das celebrações segundo os livros precedentes ao Concílio Vaticano II e a recusa da Igreja e de suas instituições em nome do que eles julgam ser a ‘verdadeira Igreja'”; a fim de que – com base nas disposições do Motu Proprio – os Bispos assegurem que os grupos que pratiquem a liturgia tradicional “não excluam a validade e a legitimidade da reforma litúrgica, dos ditames do Concílio Vaticano II e do Magistério dos Sumos Pontífices”. Tudo isso, aliás, para dar aos “tradicionalistas” o tempo necessário “para retornar ao Rito Romano promulgado pelos santos Paulo VI e João Paulo II”.
Mas corresponde à realidade essa redução do tradicionalismo litúrgico à rebelião anti-conciliar? Em que dados se fundamenta? É confiável essa ideia de que os “tradicionalistas” devem ser reeducados no pensamento litúrgico único? É crível que a consulta aos Bispos, realizada em 2020, tenha dado indicações tão unívocas e homogêneas neste sentido? Excluindo o fato de que, quanto ao que dizem, apenas um terço dos bispos teriam respondido ao questionário e que a maioria deles não teria relatado problemas (mesmo com as respostas negativas tendo sido enfatizadas nos resumos preparados pelas lideranças de algumas Conferências Episcopais), quem conhece a realidade do tradicionalismo litúrgico sabe que atribuí-lo de forma geral e como elemento identificador à “recusa da Igreja e de suas instituições em nome do que eles julgam ser a ‘verdadeira Igreja'” não corresponde aos fatos. Não parece ser coincidência, portanto, que os bispos franceses, dado que precisam lidar com a “verdadeira” realidade do mundo tradicional com muito mais intensidade do que o ordinário italiano, na própria declaração dedicada às novas normas e à vontade de cumpri-las, começou se manifestando: “aos fiéis que habitualmente celebram segundo o Missal de S. João XXIII e aos seus pastores, por sua atenção, e pela estima que têm pelo zelo espiritual destes fiéis e pela sua determinação em continuar juntos a missão, em comunhão com a Igreja e segundo as normas em vigor” [ver aqui]. Menos espantoso ainda – ou, sob certo ponto de vista, ainda mais espantoso – que, em Paris, a Rádio Notre-Dame, rádio fundada em 1981 pelo Arcebispo Jean-Marie Lustiger de Paris, e hoje presidida pelo Arcebispo Danis Jachiet, bispo auxiliar de Paris, sucessor de Dom Michel Aupetit, atual Arcebispo de Paris, teve que dar conta dos numerosos telefonemas de protestos recebidos, e que se difundiram significativamente, contando inclusive com a solidariedade de comunicadores e jornalistas (para saber mais, aqui).
Isso não significa que entre aqueles que assistem à Missa tradicional não se possa realmente encontrar aqueles que recusam a Igreja e suas instituições ou que neguem os ditames do Concílio Vaticano II e do Magistério dos Papa ou a validade e legitimidade da Missa reformada (atenção: validade e legitimidade; porque acreditar que o novo Missal seja defeituoso, mesmo gravemente, e prejudicial em comparação ao precedente, e, sobretudo, que seja conclamado a falência da reforma litúrgica, é algo bem diferente). Da mesma forma, entre aqueles que assistem à Missa nova, há – em proporção significativa – aqueles que aceitam ou promovem a legislação do aborto ou, ainda, o próprio aborto; aqueles que são favoráveis à eutanásia e querem praticá-la neles próprios; que aceitam a sodomia e rejeitam o que diz o catecismo sobre o tema; quem não crê na Presença Real; quem nega que haja vida após a morte; aqueles que acreditam que a Igreja não tem autoridade para dar orientações morais; quem nega sua constituição divina; aqueles que dizem “vou à missa quando tenho vontade, e não quando a Igreja, os padres ou o Papa me dizem”; quem diz “Eu confesso diretamente a Deus, não ao padre”; e assim por diante. Não sou eu quem estou dizendo isso, são as estatísticas credenciadas. Portanto, qualquer um que queira fazer coincidir a Missa tradicional com a rebelião anti-conciliar deve igualmente fazer a Missa reformada coincidir com o aborto, a cultura da eutanásia, a homoeresia, a descrença eucarística, a apostasia progressiva.
Assim, para encerrar no que diz respeito à Carta, direi que parece imprudente o apelo às revogações de São Pio V. Um Papa Ghislieri ressuscitado revogaria o missal de São Paulo VI hoje…
Duas palavras, agora, sobre o modo de pensar que está por trás da Carta e do Motu próprio, o que não é difícil de ver. Há um nome que resume tudo: Andrea Grillo. Não digo isso porque eu acho que ele tenha desempenhado algum papel crucial (não tenho elementos para afirmar), mas porque o dictatus Papae Francisci parece cumprir com exatidão todas as expectativas que Grillo expressou repetidamente em seus escritos, e ecoa claramente o conteúdo de unidade litúrgica que ele repetidamente formulou. Basta observar o princípio de que (somente) “os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, em conformidade com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do Rito Romano” (TC, art. 1).
Pois bem, acolhendo elegantemente com júbilo o conteúdo de Traditionis Custodes, em 17 de julho, Grillo comentou este princípio da seguinte maneira: “esta afirmação suplanta radicalmente o ousado sofisma em que a Summorum Pontificum se baseava, isto é, a ‘convivência paralela’ de duas formas de rituais, onde uma contradizia a outra”. Portanto, o missal reformado contradiz o anterior; portanto, um e outro são radicalmente opostos; portanto “não pode haver uma concorrência originária entre duas formas de rituais, onde uma delas nasceu para corrigir a anterior”. De fato, “o rito romano, graça ao Concílio, superou aqueles limites que não podem permanecer, paralelamente, como uma ‘outra liturgia’, sem determinar a presença de uma ‘outra Igreja’ (A. Grillo: Traditionis custodes: the rite and the bispos, em Weeks News).
Tudo isso é francamente impressionante. Não tanto porque se opõe frontalmente ao magistério de Bento XVI, mas porque assume como horizonte indiscutível da vida litúrgica da Igreja o critério da ruptura, e da ruptura revolucionária; e sobretudo porque afirma um princípio totalmente estranho ao catolicismo. Na Igreja não pode existir, nem mesmo diacronicamente, duas formas de rituais incompatíveis, onde uma delas contradiz a outra, de modo a determinar também “uma outra Igreja“. Podem existir ritos complementares, bastante distintos, mesmo mutuamente impermeáveis (não por acaso que Quattuor abhinc annos proibiu “qualquer mistura entre textos e ritos” dos missais antigos e reformados), mas não ritos incompatíveis, onde a existência de um impeça (teologicamente) a existência do outro. Se realmente for assim, se de fato um rito não puder coexistir com outro porque o contradiz (ou seja, seriam exatamente opostos), então um rito seria santo e o outro não; dois ritos, ambos sagrados, são mutuamente compatíveis; dois ritos mutuamente incompatíveis não são ambos sagrados. E uma vez que a santidade é validada pela Tradição junto ao seu desenvolvimento orgânico, é muito fácil perceber que o rito contrário à santidade só poderia ser aquele que expressa contradição, ruptura e não-continuidade.
Ao fim, portanto, a única verdadeira contradição em toda esta triste história se encontra na própria decisão papal do dia 16 de julho que passou. Uma decisão que gostaria de se opor “aquele impulso à divisão – ‘eu sou de Paulo; eu, por outro lado, sou de Apolo; Eu sou de Cefas; Eu sou de Cristo’ – contra quem o Apóstolo Paulo reagiu com firmeza” (Carta que acompanha o motu proprio), mas que, para fazê-lo, fundamenta e valoriza a radical divisão de uma incompatibilidade entre ritos, de modo que aqueles que “estão radicados na forma celebrativa precedente” não possam encontrar lugar na Igreja da forma celebrativa posterior, e devendo haver “necessidade de tempo para retornar ao Rito Romano promulgado pelos santos Paulo VI e João Paulo II”, onde ali eles devem ser reeducados – talvez até mesmo coercitivamente.
Além disso, a motivação profunda para esta necessária reeducação, que essencialmente se destina a extinguir completamente o tradicionalismo litúrgico, não são realmente claras. Para além do julgamento de incompatibilidade entre a liturgia antiga e a “igreja conciliar” (a fim de evitar qualquer equivoco, peço vivamente ao leitor para considerar que eu pus a expressão entre aspas), essas razões merecem uma investigação mais aprofundada, o que iria sobrecarregar este já longo escrito, mas que, havendo oportunidade, farei em outra ocasião. Por enquanto irei me limitar a dizer que, na visão que surge do Motu proprio e da Carta, os fiéis, que cada vez mais gosto de chamar de Populis Summorum Pontificum, são considerados pela Igreja de um incompetente, mas poderoso, setor de sua pastoral como os kulaks foram para a Rússia de Lenin e Stalin.
Diante disso tudo, embora não possamos escapar da dolorosa nostalgia de quem, ao falar da “possibilidade de usar tanto o Missal do Beato João XXIII (1962) quanto o do Papa Paulo VI (1970)” disse “ninguém é demais na Igreja. Todos, sem exceção, devem poder se sentir ’em casa’ nela, e nunca rejeitados” (Bento XVI, Discurso aos bispos franceses em sua viagem apostólico por ocasião do 150º aniversário das aparições de Lourdes, 14 de setembro de 2008), devemos estar determinados a fazer tudo o que for necessário para reivindicar, na justiça e na caridade, o nosso pleno direito de sempre e em qualquer situação nos sentirmos realmente “em casa” na Igreja.