A linguagem é, por excelência, o meio pelo qual as pessoas podem se comunicar. Isso é evidente pela Lei Natural, uma vez que é por meio da linguagem que se consegue atingir a verdade no ser. Aristóteles aprofunda a análise dizendo que a língua deve obedecer, durante o processo de aquisição da verdade, o princípio de não-contradição e, portanto, é fundamental que os conceitos sejam bem claros para o entendimento das coisas. Se a Lei Natural exige a fundamentação conceitual, a Lei Divina, por sua vez, obriga o respeito pela linguagem, uma vez que o Verbo de Deus se fez carne e habitou entre nós. No entanto, a linguagem, atualmente, vem se tornando um poderoso instrumento a favor da perversão.
Antes de analisar os fundamentos teóricos da linguagem, creio que seja fundamental observar um fato histórico muito importante: os eventos a respeito da Torre de Babel. As Sagradas Escrituras afirmam que as pessoas se serviam de uma mesma língua para a comunicação e, com isso, começaram a construir a torre para reclamar com Deus de sua condição. Consequentemente, Deus desceu para a terra e acabou com essa unidade “Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros” (Gn XI, VI). Aqui está um relato bíblico da importância da linguagem para o entendimento entre as pessoas.
Esse evento fez com que aqueles que desejavam construir a torre ficassem envergonhados, humilhados e, com isso, decidissem parar a má obra que era uma afronta à vontade de Deus. Após isso, as línguas ficaram diferentes, mas tanto os hebreus como os descendentes jônicos de Noé tiveram muito cuidado com a linguagem, uma vez que sabiam da importância da precisão vocabular, de passar os conceitos exatos e, mais do que isso, saber como chegar à Verdade. Isso tudo, é claro, quando se observa o modo pelo qual os hebreus cuidam dos conceitos religiosos, enquanto os gregos têm zelo em transmitir o bom filosofar.
A vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo é importantíssima para a questão da linguagem uma vez que, segundo o Evangelho de São João, Cristo é o Verbo de Deus. E o que vem a ser o Verbo? É a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade que disse “Em verdade, em verdade, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou tem vida eterna e não vem a julgamento, mas passou da morte à vida” (Jo V, XXIV). Ora, se Nosso Senhor está dizendo que a voz dEle é verdade e necessária para a nossa salvação, então a linguagem exerce um papel importantíssimo para a salvação dos homens. Sem isso, a humanidade não consegue perceber a realidade e, com isso, pode cair em falsas ideologias.
Essa noção da linguagem estava presente, fundamentalmente, na boca dos filósofos gregos como Platão e Aristóteles. Isso fica evidente quando se observa, nos diálogos de Platão, a necessidade de conceituar as coisas de maneira muito precisa e, consequentemente, debelar o erro dos sofistas[1]. É evidente o embate que há no livro Teodoro, quando Sócrates busca pressionar o Estrangeiro para a conceitualização correta das coisas. Nesse sentido, está se buscando o fundamento linguístico para, posteriormente, conseguir extrair a essência das coisas. Quando a linguagem está subordinada a verdade, é possível realizar um debate sério e qualificado.
Depois da morte de Nosso Senhor Jesus Cristo e a formação, paulatina, da Cristandade, os filósofos cristãos buscaram manter a coerência com os conceitos apreendidos e, com isso, evitando a perversão. É evidente, por exemplo, em toda a obra de Santo Agostinho, as referências platônicas e a fidelidade com a qual o Doutor da Graça trabalha com o conceito a respeito da imortalidade da alma. São Basílio Magno defendeu a leitura de literatura pagã para conseguir ampliar o vocabulário, formar o imaginário e, com isso, ter um maior desenvolvimento linguístico. A Patrística fundamentou os instrumentos de análise cristã, porém foi a Escolástica, com Santo Tomás de Aquino e Santo Alberto Magno que a precisão vocabular ganhou seu auge, no século XIII.
No entanto, a transição da Idade Média para a Idade Moderna deu início a um processo de rompimento com a fidelidade linguística, conceitual, política e posicional. O Renascimento deve duas consequências para esse processo: em primeiro lugar, a produção de conhecimento deixou de estar vinculada com a tradição popular e passou a ser deslocar para as cidades, onde serviu para a burguesia em ascensão como instrumento de manobra. Em segundo lugar, trouxe o homem para o centro da formação da sociedade, rompendo com o teocentrismo e dando brecha para o rompimento com o Verbo Divino. Se, na literatura o renascimento trouxe isso, na filosofia, o nominalismo fez com que a essência das coisas fosse impossível de ser alcançada, possibilitando que a vontade tomasse o lugar da inteligência. Esses dois movimentos abriram as portas para grandes problemas na Cristandade.
O primeiro problema deu-se no campo político e religioso. Com o renascimento, as cidades italianas deram muita ênfase ao paganismo, ao sentimento de glória antiga de Rômulo e Remo[2] e passaram a guerrear umas com as outras, fazendo com que a região se tornasse instável. Dentro desse contexto, Nicolau Maquiavel escreve o livro O Príncipe, no qual rompe com o conceito de virtude, dando ao estadista a opção por escolher o que vem a ser a virtude, ou seja, rompendo com o realismo e a tradição católica de ascética e mística. Na Europa Central, por outro lado, o nominalismo teve grande influência para Martim Lutero que, com uma visão deturpada do cristianismo, argumentou que as Sagradas Escrituras corroboram a Sola Fide, quando cita São Paulo “Porque nele a justiça de Deus se revela de fé para a fé, conforme está escrito: o justo viverá da fé (Rm I, XVII). A visão nominalista permitiu com que houvesse um entendimento errado da santidade e o que é a virtude teologal da fé.
Uma vez que esses dois fenômenos aconteceram e as forças centrífugas da Cristandade começaram a trabalhar para solapar as bases da Santa Igreja Católica, os atores perceberam que a linguagem seria um instrumento poderoso para ajuda-los na tarefa de reforçar os argumentos e, com isso, colocaram os intelectuais em suas cortes[3]. Nesse sentido, o trabalho intelectual deixou de ser a busca sincera pela verdade e passou a ser destinado para a produção de argumentos para a defesa de teses. Soma-se a isso o rompimento completo que René Descartes fez na filosofia, ao separar a res cogitans[4] da res extensiae e o caminho para a filosofia moderna estava aberto. O intelectual francês Julian Benda, em seu livro “A Traição dos Intelectuais” mostra como que os estudiosos passaram a defender paixões políticas e não mais a verdade.
Com isso, a filosofia moderna, inaugurada no século XV e com sua maturidade no século XVI, pavimentou o terreno para o surgimento do utilitarismo, pragmatismo, empirismo e contratualismo que, juntos formam boa parte do sistema filosófico liberal. No século XVII, principalmente na Inglaterra, com a Guerra Civil e a Revolução Gloriosa, o liberalismo conseguiu seus primeiros triunfos, principalmente por se utilizar de uma leitura nominalista da Magna Carta de 1215[5] e, consequentemente, a monarquia passou a ser constitucional, desfazendo os laços orgânicos da sociedade inglesa. No entanto, é no século XVIII que o sistema filosófico moderno ganha toda a sua robustez com o Iluminismo.
A partir do Iluminismo, a linguagem não é mais utilizada de forma equivocada o para defender uma tese que busca a verdade, ainda que de maneira insuficiente. Os iluministas franceses, com uma retórica anticatólica, passaram a modificar o vocabulário, a evitar utilizar certas palavras e a diminuir a propagação de alguns termos da fé católica. Monsenhor Henri Delassus argumenta que, durante a Revolução Francesa, o ódio a Santa Madre Igreja era tanta, que o calendário foi alterado, no ano de 1793, quando a ala mais exaltada da revolução tomou o poder. Os jacobinos, então, criaram nomes como brumário, nivoso, ventoso e termidor. Por essa razão, nota-se que a linguagem já começava a ser utilizada como forma de perversão.
No século XIX, com o avanço do romantismo alemão e a agenda revolucionária maçônica francesa, houve uma clara tentativa de reverter conceitos para conseguir aplicar as teses revolucionárias de forma mais clara. No entanto, com a publicação do Manifesto do Partido Comunista e do Capital, por Karl Marx, houve o estabelecimento de novos conceitos e uma forma nova de construir um novo homem, com uma nova moralidade e uma linguagem adequada. A partir desse momento, a linguagem entra, de vez, no processo de avanço da revolução.
A Revolução Russa, em 1917, começa por iniciar um grande processo de destruição de tudo o que é tradicional. Em primeiro lugar, com o assassinato da família Romanov, o aspecto aristocrático cai, depois vem por meio da destruição de obras de arte e livros e, por fim, a formação de uma nova cultura. O construtivismo de Vladmir Tatlin e o realismo soviético fizeram com que a cultura fosse completamente engajada para o esforço revolucionário. No Ocidente, as vanguardas literárias, principalmente com o romantismo e realismo, fizeram com que o darwinismo social e o positivismo ganhassem bastante notoriedade. Do primeiro, nota-se as obras de Oswald Splenger que argumenta uma necessidade de branqueamento e purismo europeu, do segundo, Emile Durkheim sendo o responsável por usar as palavras de forma ambígua para analisar a sociedade.
Porém, é na Alemanha que irá surgir a Escola de Frankfurt que bebe da psicologia de Sigmund Freud, corroborando com as livres associações e, portanto, sendo necessário trabalhar o inconsciente da criança para que ela guarde impressões fortíssimas. Depois de serem perseguidos por Adolf Hitler, os teóricos da escola vão para os Estados Unidos da América, após a Segunda Guerra Mundial, e iniciam os seus estudos mais robustos. Por estar ligado às esquerdas, o objetivo inicial deles era entender o porquê de não ter ocorrido a aliança dos proletários na Primeira Guerra e o que deveria ser feito. Assim sendo, eles estudaram a cultura e descobriram que a linguagem e o imaginário são fundamentais para o estabelecimento de uma revolução.
Os autores Teodor Adorno, Walter Benjamim e Max Horckheimer, então, passaram a ver como que a linguagem é fundamental para a manutenção do status quo e como fazer para perverte-la. Em primeiro lugar, eles descobriram que a formação literária clássica é prejudicial para a revolução, uma vez que os grandes autores da civilização cristã estão comprometidos com a verdade. Nesse sentido, é importante que eles sofram com queima de reputação. Para isso, eles se valem de todos os tipos de artimanha possíveis, desde mentiras até anacronismos. Em segundo lugar, é necessário monopolizar palavras que, pelo senso comum, se tornariam virtuosas: democracia, diálogo e diversidade. Assim sendo, eles conseguem fazem com que essas palavras, por conta da imprecisão filosófica, sejam colocadas do lado revolucionário, em qualquer discussão. Por fim, é necessário criar um outro vocabulário para apagar com toda a história e tradição linguística.
A base linguística que o teóricos da Escola de Frankfurt se utilizaram foi o francês Ferdinand Saussure, um linguista que criou o conceito do significante e do significado. Durante toda a filosofia clássica, os dois conceitos eram harmônicos, uma vez que a busca da verdade era o objetivo. Porém, com a tese revolucionária, o significante se descola do significado e, por isso, é possível colocar qualquer outro conceito para substituir o que realmente significa. Assim sendo, a Teoria Crítica[6] tinha a sua fundamentação para dar continuidade ao processo revolucionário. Todo esse processo foi estudado e descrito no livro 1984[7], de George Orwell, criando o conceito de novilingua.
O início da implementação desse cabedal teórico deu-se no final da década de 1960, em dois momentos: Maio de 1968 e Woodstock 1969. No primeiro, os revolucionários esquerdistas começaram a mudar os conceitos de democracia, liberdade e igualdade e, no segundo, foi a parte propositiva do espetáculo com “sexo, drogas e rock n’ roll”. O principal alvo de tudo isso? Os jovens, pois, inserido em um mundo revolucionário e liberal, não tinham as armas para contrapor a isso tudo. Como consequência, houve o empobrecimento da alma, já que a luxúria traz embotamento da inteligência e, aos poucos, a capacidade de estudo foi diminuindo. Ora, aqui está o aspecto mais importante: se o objetivo é destruir a moralidade de um povo, primeiramente, destrua a sua inteligência.
À medida que o desenvolvimento desse processo de desconstrução avançava, os intelectuais se formavam nela e, a partir da década de 1980, os professores universitários e as mídias se tornaram as grandes propagadores dessa nova cultura, a da “quebra dos paradigmas linguísticos” e da necessidade de criação de outros termos. Nesse sentido, nota-se que a novilíngua ganhava terreno nos principais meios de comunicação de massa e na mente dos jovens “intelectuais”.
A partir de então, a agenda revolucionária nessa área tinha dois grandes objetivos: destruir o que é velho e colocar o que era a nova criação. No Brasil, a destruição do antigo acordo ortográfico começou na década de 1980 e ganhou apelo mundial com a assinatura, em 1990, do novo acordo. Como justificativas, os revolucionários utilizaram-se dos argumentos de “colonialismo”, “novas formas de se expressar”, “fuga das regras”. No entanto, o acordo sofreu resistência e, somente em 2009, durante o governo do esquerdista Luís Inácio Lula da Silva e do ministro da educação Fernando Haddad, é que ele foi colocado em obrigação. Ao mesmo tempo que se destruía, buscava a implementação de outros termos como “aborto”, “casamento homossexual”; “democracia inclusiva”. Todos esses termos buscando evitar dizer o que as coisas realmente são. O aborto nada mais é do que o assassinato de uma criança no ventre materno e não a interrupção de um amontoado de células.
O problema se agrava quando a agenda revolucionária entra, definitivamente, no seio dos seminários e das paróquias. Ao utilizar os termos que os revolucionários desejam, o campo de batalha passa a ser determinado pelo seu oponente e, consequentemente, a vitória fica impossível. Um exemplo claro disso é quando se lê o Texto-Base da Campanha da Fraternidade de 2021, quando se utiliza termos como “LGBTQI+”, “patriarcado”, “opressão”. Nesse sentido, nota-se que a linguagem deixou de ser católica e passou a dar ouvidos para os inimigos da Santa Igreja Católica. Infelizmente, o modernismo penetrou na Igreja e, com isso, a Esposa de Cristo é manchada e alvejada internamente.
É, portanto, fundamental que os católicos voltem a estudar os conceitos de forma precisa, buscando nas fontes corretas o entendimento e tirando as suas dúvidas com bons intelectuais. Somente com uma restauração linguística adequada é que se pode fazer o verdadeiro enfrentamento à revolução, pois os católicos devem usar os termos corretos, já que estão lastreados na verdade. Parafraseando o Papa São Pio X, é necessário restaurar toda a língua em Cristo.
Pode-se concluir, portanto, que o processo de deturpação cultural, por meio da linguagem, é algo real e que possui, claramente, objetivos específicos. A Escola de Frankfurt e a novilíngua são exemplos claros de como a modificação da linguagem pode fazer com que toda a inteligência e a moralidade sejam corrompidas.
Notas:
[1] Os sofistas pertenciam a um grupo que utilizavam-se de retórica para o convencimento das pessoas, porém se a precisão metafísica e linguística. Com isso, eles queriam ludibriar os adversários para conseguirem o prestígio que buscavam.
[2] Fundadores da cidade de Roma. A fundação da cidade pode ser estudada a partir da obra Eneida de Virgílio.
[3] Ver o que os príncipes protestantes fizeram com linguistas e teólogos
[4] Res cogitans e res extensiae são dois conceitos fundamentais para compreender a epistemologia de Descartes e a ruptura com Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, ambos formadores do Realismo Moderado.
[5] Primeiro conjunto de leis na Inglaterra formulado por João Sem Terra.
[6] A Teoria Crítica é a principal teoria criada pela Escola de Frankfurt e basicamente argumenta que deve-se questionar tudo, sem que haja um impositivo realista para frear. É, portanto, uma teoria negativa e destrutiva de qualquer aspecto de realidade.
[7] O livro foi publicado, em 1949, quando a Escola de Frankfurt estava estudando o Nazismo e toda a propaganda de Goebbles, para compreender como se deu o processo de convencimento na Alemanha. George Orwell traz o Ministério da Verdade para mostrar que, agora, são os especialistas que detém a verdade e não mais aqueles que buscam o conhecimento de forma séria. É, portanto, um selo de certificação em contraposição com a boa e velha forma de se fazer filosofia.