Deus não nos ama porque somos amáveis, mas somos amáveis porque Ele nos ama
I
Como se constrói uma doutrina filosófica, uma visão de mundo? A resposta a esta pergunta é análoga à de como uma alma se forma, ou melhor, se informa do mundo. Assim como as páginas de um livro não se preenchem por si mesmas, assim não se dota, por assim dizer, de constituição a alma senão por uma atualização de sua receptividade. É clássica para exprimir esta realidade a expressão tábua rasa, a qual não parte senão da apreensão de uma realidade muito simples: todo ser humano nasce incompleto e sem conhecimento, e sem conhecimento ele não pode trilhar o caminho de seu aperfeiçoamento. Ora, nesse sentido aperfeiçoar-se é informar-se, é ser moldado, e se isso é possível é porque há nele uma capacidade intrínseca de recepção do ser.
Aqui tocamos o cerne da questão de maneira mais clara, uma vez que doutrinas filosóficas ou científicas não são senão o ser recebido transmitido ou exposto formalmente. O ser desde o qual se apreende o mesmo ser é, pois, o fundamento do discernimento da veracidade do que se expõe como sendo este ser, esta realidade. Em outras palavras, o ser é pressuposto às nossas formulações, que serão verdadeiras tanto mais exprimirem com fidedignidade o ser que precisamente buscam exprimir. Nesse sentido, informar-se da verdade é haurir da consistência do ser mesmo, portanto é aperfeiçoar-se, completar-se. A própria ação humana tende ao fim, ou ao bem enquanto tal, como diria Santo Tomás, e o que o sujeito vê como bem – ver é enxergar o que é –, vê-o como capaz de completá-lo (a expressão “vazio interior” manifesta-o bem).
Com isso, delineamos brevissimamente os clássicos transcendentais, conceitos absolutamente fundamentais para a filosofia e teologia católicas. Mas o que são os transcendentais e quais?
Em primeiro lugar, os transcendentais podem ser definidos como os vários aspectos daquilo que é, do ente, do ser sendo, do ser em ato de ser. Como tais, são uma única e mesma realidade, compreendida sob ângulos diversos. Tradicionalmente, são classificados da seguinte forma: verum (verdade), bonum (bondade), pulchrum (beleza), res (coisa ou realidade), aliquid (alteridade) e unum (unidade).
O que é, enquanto é, é verdadeiro, bom, belo, delimitado em si mesmo (distingue-se dos demais), uno, etc. . Tudo o que é é porque participa do Ser de Deus; tudo o que é é verdadeiro porque corresponde ao pensamento ou ideia de Deus com relação a isso que é, por participação do qual também nós, seres inteligentes, os enxergamos; tudo o que é verdadeiro é bom, porque é querido por Deus, amado por Deus.
Santo Agostinho dirá, a propósito disto, que Deus não nos ama porque somos amáveis, mas somos amáveis porque Ele nos ama, nos quer, e o mesmo se dá com relação à nossa existência, porque seu querer e seu pensar infundem em nós o ser, a amabilidade, a veracidade, a unidade, e no-las sustentam. (Permita-me o leitor invocar aqui algo que o Pai dignou-se de dizer a Santa Catarina de Sena em seus colóquios e que me parece instigante: “Eu sou o que sou, e tu és quem não é”).
Na linguagem, facilmente se nota a identidade entre os transcendentais, quando “homem bom” é equivalente a “homem de verdade”, ou “cantar bem” à “cantar de verdade” ou “que belo cantar!”, ou ainda “como canta este homem!”, com ênfase apenas no verbo, indicando apenas o ser ou o ato de cantar.
Permita-me o leitor invocar aqui algo que o Pai dignou-se de dizer a Santa Catarina de Sena em seus colóquios e que me parece instigante: “Eu sou o que sou, e tu és quem não é”. Por uma perspectiva teológica, podemos tomar disto meio de compreender ainda melhor o que fica dito e o que virá adiante:
1) Não se é Santo senão por uma espécie de aniquilação própria mediante a qual Deus preenche o homem de Si. Em outras palavras, pela humildade, o rebaixamento de si, que não é senão o reconhecimento da própria pequenez e do “não-ser” que se é, digamo-lo assim, é que Deus eleva o homem fazendo-o participar mais plenamente de seu próprio Ser subsistente, de forma que o Santo, tanto mais “não é” a seus olhos (incapazes de elevarem-se por sobre sua própria limitação), mais “é” aos olhos de Deus (cf. Lc 1, 46-55; 14, 7, etc.). Ora, ser aos olhos de Deus é o fundamento supremo do ato de ser, de subsistir e de ser em plenitude, como vimos acima com Santo Agostinho.
2) Desta forma, a criatura é o que é tanto mais se conforma à ideia que Deus tem dela quer “atualmente”, em a sustentando no ser, quer “virtualmente”, como modelo acabado. Ela – a pessoa espiritual – só é verdadeiramente quem é quando é quem Deus quer que ela seja; sua verdade, ou seja, quem ela é de verdade, ou quem ela precisa tornar-se para ser mesmo, é o ideal para o qual tende, ainda que sem saber. E se tende a ele como fim, no sentido de que busca sua perfeição, é o mesmo que dizer que tende a ele como bem, o seu bem. Esta pessoa, irrepetível e concreta, que é chamada a atualizar em si um aspecto do rosto de Cristo, e assim ser perfeita como o Pai é perfeito, porque o Verbo encarnado é imagem perfeitíssima do ser do Pai, ela tem sua unidade, verdade, alteridade, bondade e beleza atualizadas quando se santifica, ou seja, quando se assemelha a Cristo, que é a Verdade, a Vida e, particularmente, o “Eu sou” por excelência.
II
Depois de alguns apontamentos e aplicações teológicas dos transcendentais, convém retornarmos ao tema da informação (in formare) ou inscrição interior da verdade no homem.
É bastante conhecido o princípio ninguém ama o que não conhece. O ente cognoscente, em contato com o ser, enxerga-o e, ao ver sua verdade ou conformidade com sua finalidade de vida, deseja-o, anui a ele. Aqui, o ser se apresenta ao homem e é captado pela inteligência e amado pela vontade, e tanto mais nobres são as verdades conhecidas e os bens consequentemente amados, tanto maior é o aperfeiçoamento interior que disso resulta. Não se trata, claramente, de conhecimentos adquiridos à erudita e simplesmente memorizados, mas sobretudo de bens amados, do ser amado. Se verdadeiramente se conhece o ser, há real aproximação de Deus, e isto por várias razões, sabendo-se que por meio do espelho das criaturas vimos reluzir reflexos do Criador e capacitamo-nos mais formidavelmente a elevar-nos a Ele.
No âmbito meramente natural, pode-se conhecer a vontade de Deus, ainda que confusamente, como um chamamento da consciência, do dever, da realidade que grita e nos impele a algo. Há que conhecer isto e muito mais para que haja o ímpeto da vontade em direção ao que, conhecido, se lhe apresenta como um bem. Nesse sentido, há uma convergência em direção a Deus conhecido naturalmente.
Porém, e se Deus transpassasse a ordem natural, em seus desígnios para conosco, a fim de revelar-nos mais do que nos revela o ser natural à nossa frente? É isso o que se deu na chamada “revelação”: Deus falou-nos, deu-nos a conhecer quem Ele é em sua vida íntima – da Trindade sacrossanta – e seus desígnios benevolentes e sobrenaturais com relação a nós, de maneira claríssima, por meio dos hagiógrafos, profetas, etc. .
Mediante a virtude teologal da fé nós assentimos a estas verdades reveladas por Deus e, pela caridade, o amamos a Ele que no-las revelou, iluminando nossa inteligência e convidando nossa vontade. Porque, quando o ser se mostra, o conhecemos; e quando o conhecemos verdadeiramente, quando o ser que se mostra é bom mesmo e tal qual se nos apresentou,4 se nós somos humildes (se reconhecemos nosso não-ser), especialmente, que sucede? Nosso coração se rende ao ser, à verdade e à bondade, e essa rendição o eleva, porque o ser a que ele se prostra é Deus mesmo, o Ser supremo conhecido obscuramente pela fé (no caso das verdades sobrenaturais que lhe atêm, obviamente).
Ora, de certa forma, quando conhecemos algo o trazemos para nós e nos tornamos um com ele; ele informa nossa inteligência e o possuímos por meio desta. Essa posse, inicialmente ideal, dá lugar ao desejo de uma posse real, quando se trata do conhecimento de uma pessoa (substância individual de natureza racional, diria Boécio), grau o mais elevado na ordem do ser. Defendo que nós só queremos unir-nos realmente a algo na medida em que este algo traz algo de pessoalidade, ou de análogo à pessoalidade, pois, se a vontade, diante do mais perfeito e do melhor, é mais fortemente convidada quando o ser lhe resplandece formidável e claramente (e há docilidade da parte do sujeito), ela é naturalmente inclinada a dar-lhe anuência tão logo se lhe apresente como o que é isto que é com intensidade (ou seja, tal ser muito perfeito). Se ela se inclina a um menos perfeito como a um fim bastante apetecível, é porque considera-o muito perfeito, enxerga-o mal, não possui adequadamente o ser da coisa pelo intelecto; atribui-lhe o que é incapaz de dar ou o que não tem, etc. .
Talvez o leitor, pela experiência que possui, se espante do que fica dito no último parágrafo, mas podemos compreendê-lo melhor se nos lembramos de que Deus visto face a face é irresistível à vontade criada (e à própria vontade divina, porque a felicidade de Deus se constitui da posse e fruição de Si mesmo, como não poderia ser d’outro modo), atualizando nesta o máximo grau de liberdade que pode haver, no sentido de que a liberdade é a faculdade pela qual se pode escolher o bem, e o objeto da vontade não é senão o bem. Se a vontade adere a males é porque os tem como bens, e isso por uma má apreensão da inteligência, uma indocilidade da própria vontade, influência de paixões desordenadas e assim por diante. Seja como for, porém, a pessoa é, na escala do ser, o que mais nos pode aperfeiçoar, o que mais convenientemente podemos apetecer. Porventura não amamos com mais facilidade o que nos é semelhante? Se víssemos um anjo – que é pessoa –, apesar de sua eminente superioridade, sentir-nos-íamos imensamente atraídos por ele, por sua grandeza, beleza e esplendor, mais do que por qualquer ente sublunar.
Pois bem, sendo assim, retornemos ao que estávamos falando da fé. Por meio desta, conhecemos que Deus é trindade, quer dizer, que há três pessoas subsistentes em uma única natureza divina, que Deus por conseguinte é pessoal, ama-nos, importa-se conosco de maneira sobre-eminente, a tal ponto que nos chama a uma felicidade quase que infinitamente superior à que “merece” os débeis limites da nossa natureza por si mesma. Conhecemos que Deus Pai, por virtude do Espírito Santo, em um concurso admirável da Trindade, enviou o seu Filho, imagem perfeitíssima de sua substância, ao mundo, ou seja, que a segunda pessoa da Santíssima Trindade se encarnou, assumiu uma natureza humana, rebaixando-se, com espanto dos mesmos anjos, à condição de um escravo, segundo a expressão do Apóstolo (Fl 2), para salvar-nos da morte eterna, dar-nos vias de santificação, o reino eterno, a união plena com Ele por toda a eternidade.
Isto, quando anuído pela vontade movida pela graça, aceito pela inteligência, independentemente de qualquer moção sensível, necessariamente produz uma transformação interior, porque informa a alma do homem, admira-o, deslumbra-o, convida-o, impele-o a dar-se de volta a Deus que se dá a si mesmo. Ora, só dois seres pessoais e conscientes se podem dar-se a si mesmos num êxodo de amor; quem ama desordenadamente o dinheiro pode dar-se de todo a ele, mas não vê qualquer retorno, razão pela qual este amor vão tem por termo o próprio indivíduo, fadado a sepultar-se num enfadonho e idolatrado egoísmo.
Com o que fica dito, é impossível concluir que a necessidade de formação do católico seja apenas estudar e estudar. Pode-se conhecer tudo isto e não se ter fé. O conhecimento da fé não se aparta do coração amante e da graça divina; deve estar subordinado a amar mais a Deus, porque, tanto mais o conhecermos, mais o amaremos. Um analfabeto pode ser um Santo de sétima morada com pouquíssimos conhecimentos discursivos, mas a intensidade ou profundidade com que conhece os principais artigos de fé é que cativará irrefragavelmente seu coração. Nesse sentido, ele conhece muito mais do que quem tem decorada a Suma Teológica e não ama a Deus. Com efeito, assim como há ordens no ser, as há no conhecer (“este sim conhece a fé! Este sim ama!”…); porém, a um verdadeiro conhecer se segue um verdadeiro amar.
Esta última sentença dar-nos-á lugar a uma outra questão, a que devemos responder antes de entrarmos na última parte do presente artigo, que será mais uma aplicação dos transcendentais, agora com ênfase prática e de advertência pastoral aos sacerdotes, pais, catequistas e tutti quanti.
III
Em Teologia, sabemos que a menor distinção, que o mais sutil deslize conceitual pode causar erros gravíssimos, discussões aparentemente intermináveis e divisões as mais amargas. Nos primeiros séculos da Igreja isto é patente. Primeiro, houve discussões a respeito da messianidade de Jesus, no âmbito dos judeus; da pluralidade dos deuses, no dos gentios. Um pouco mais tarde, um herege infeliz, chamado Mane, pôs em xeque a autenticidade do Antigo Testamento, atribuindo-o a um deus mau, criador da matéria, enquanto dava ao Novo o selo do deus bom, justo, misericordioso, criador do espírito.
Certamente, houve muitas heresias cujos erros e consequências práticas destes eram tão eloquentes e expressivos que não deixam lugar a que se compreenda a ênfase da Igreja em combatê-los. Porém, com o passar do tempo, começaram a nascer heresias mais sutis e para cuja compreensão se requeriam conhecimentos apurados de filosofia e teologia, geralmente alheios ao comum dos fiéis, como quando se discutia se Cristo tinha ou não duas vontades, a divina e a humana, ou se era Deus mesmo ou uma criatura sublime, para resolver o que foi criado o conceito de hipóstase, ou, o que é ainda mais sutil e complexo, a famosa cláusula Filioque, que ensina dogmaticamente que o Espírito Santo procede não só do Pai mas também do Filho.
Ora, que diferença faz saber se o Espírito Santo procede do Filho, também, ou não? Em que ajuda ou prejudica conhecer detalhes aparentemente tão insignificantes para o comum dos fiéis, se “o que importa é seguir a Jesus e cumprir seus preceitos”? Em essência, esta é a mentalidade de muitos falsos católicos de hoje, imbuídos de pragmatismo ou de relativismo, ou de indiferentismo com respeito à fé, e também a de muitos protestantes.
Surpreendido por tais questionamentos, pode o católico fiel não saber como lhes responder, pelo peso retórico que têm na boca dos indiferentes e mundanos. Mas isso seria permanecer apenas na camada superficial da questão, sem atentar às suas implicações, que iluminam formidavelmente a loucura das premissas e conclusões. Isto também fará que saibamos a importância de conhecer minimamente nossa fé – minimamente aos que pouca condição têm de se aprofundar, quer por compleição péssima ao estudo, quer por falta de tempo justificada, e adequadamente às obrigações de estado de cada um.
Não há na América mais de cem pessoas que odeiam o Catolicismo, mas há certamente milhões que odeiam o que acham que é o Catolicismo – Fulton Sheen
Esta frase certamente ilumina a questão, mas daremos mais exemplos. Imagine-se a seguinte situação. João é filho de Alberto, tem 25 anos e nunca conheceu o pai. Ao longo de sua vida, seus familiares colocaram-lhe na cabeça que seu pai o abandonou quando novo, e outras muitas coisas ruins a seu respeito. Naturalmente, João não terá de seu pai uma boa imagem, nem para com ele sentimentos filiais arraigados como o teria alguém cujo pai tivesse sido um herói da Segunda Guerra, um mártir e assim por diante. Se João for vicioso, o ressentimento que lhe inculcaram no peito se verterá em ato consciente de revolta ou ódio contra seu pai, que ele não chegou a conhecer pessoalmente, mas apenas virtualmente, idealmente. Se se tratar de um jovem virtuoso, não por isso faltarão sentimentos negativos, como a tristeza por exemplo.
Suponhamos, porém, que Alberto não é o péssimo pai que pintaram a João, mas que houve uma séria de vicissitudes gravíssimas e inescapáveis que produziram o afastamento, que então foi involuntário e combatido por Alberto, mas não ressarcido. A ideia que João tem de seu pai e que lhe gera pouco amor, pouco ímpeto, não correspondendo ao ser de Alberto, não pode consequentemente ser dita verdadeira, ou seja, aquele não é Alberto, não corresponde à sua realidade ou coisa (res) a que se refere, não tem alteridade enquanto ente real e existente, e portanto não é passível de amor. Não sendo supostamente Alberto um bom pai, um pai de verdade, não lhe corresponderiam os predicados próprios de um pai que é pai, nem o amor próprio desses predicados.5
De qualquer forma que seja, pode-se dizer que o desamor de João por seu pai é “justificado”, e na verdade inexiste, porque esse indivíduo que ele não ama e considera tão mau e indigno não é seu pai, não é em absoluto Alberto. Porém, em presença de Alberto, não se veria a bondade deste infamado homem precisamente porque não se conheceu sua verdade, e então se pensa que ele é o que ele não é. A mera presença física da pessoa, portanto, não pode produzir por si mesma a sua amabilidade, para a qual requer-se um verdadeiro conhecimento, que por sua vez supõe uma boa apreensão do ser – não apreensão sensível somente, mas intelectiva, profunda, ontológica, sem o que não resplandece o ser tal qual. Não é porventura a intimidade senão o conhecimento profundo do ser do outro. É conhecer, de certa maneira, segundo a totalidade ou mistério do que o outro é. Requer-se para isso a presença de dois corações um ao outro, de dois que são e se querem porque são o que são (“Você é minha esposa”, “Eu sou vosso Deus e vós sereis meu povo”, etc.). Requer-se, pois, a luz da verdade.
Sem o conhecimento da verdade de quem Alberto é, João não pode lançar-se por amor ao seu ser, porque não enxerga sua bondade.6 Não haveria união verdadeira sem verdadeira apreensão do ser. A inteligência se faria um com algo que não é verdadeiramente, e assim por diante. Quem recebe a semelhança ideal, mas falsa, de um ser real que é bom, e no entanto foi concebido como mau, evidentemente não se lançará à sua concreta manifestação com ânsia de união, mas de afastamento. Eis um resumo do problema.
Pois bem, dito isto, como podemos conceber que tenha uma atitude real e verdadeira para com Cristo quem não o tome pelo Messias profetizado nas Escrituras, nascido duma virgem, miraculosamente, para salvar o seu povo? Mais: como isso se pode dar quando não se crê que Ele é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, que assumiu uma humanidade? É certo que se pode incidir sobre Ele por via de pensamento ou mesmo de experiência, em nossos cálculos ou estudos, ou mesmo na vida prática, quando de seu apostolado terreno, mas que diferença há entre isto feito sem o conhecimento de quem Cristo é e com legítimo conhecimento!
Os discípulos de Emaús caminhavam com Ele como com qualquer outra pessoa, e por isso não o adoraram; porém, tão logo souberam que se tratava de Jesus, ficaram atônitos e todo o direcionamento de sua conduta alterou-se por inteiro. Não existe um Jesus que não seja Deus, nem Messias, e que não tenha ressuscitado, e que não esteja presente na hóstia consagrada. Se um protestante, nesse sentido, adora verdadeiramente a Jesus, ele adora o verdadeiro Jesus sempre, e portanto adora-o como Ele é.7
Nestório pôs em jogo a maternidade divina de Maria, maternidade da qual lhe provém uma dignidade como que infinita, segundo o dizer de Santo Tomás. Ele defendia que, por ela não ter produzido a natureza divina, não podia ser chamada Mãe de Deus, mas de Cristo, do homem Cristo. Ora, não existe Cristo, ou homem Cristo, que não seja homem-Deus, ou Cristo que é a segunda pessoa da Santíssima Trindade. Essencialmente, Cristo é o Verbo eterno feito homem, e portanto se deve dizer que sua mãe é verdadeiramente mãe de Deus.
Ora, as implicações disto para com o culto devido à Virgem Santíssima são imensas. Se não lhe prestássemos culto à altura de seu ser – de mãe de Deus –, não estaríamos correspondendo à sua verdade nem à imensidade de sua bondade e santidade, e portanto seria correto dizer que não sabemos quem ela é para o fazermos – “Não sabeis quem sou?”.
Contudo, é evidente que não estamos com isso querendo dizer que, para atingirmos o ser mesmo de Deus e das verdades que Ele nos revelou, seja preciso que os esgotemos por via de conhecimento – o que seria impossível. Para além disso, trata-se de submetermo-nos às verdades luminosas e ao mesmo tempo misteriosas e obscuras que temos diante de nós, às quais assentimos por fé, movidos pela graça, e não podemos acrescentar nem remover nada a nosso bel-prazer.
Assim, conformamo-nos com o querer divino com relação a nós em vários sentidos: 1) por seu amor, Deus deu-nos este ser que temos, que somos, delimitado, frágil, débil, criatural por fim; 2) não querendo ser como Deus nem tomar seu papel, devemos curvar-nos ante esse querer em nos submetendo ao que Ele nos revelou e como nos revelou, de forma que nossa ação seja conforme à sua vontade e, portanto, boa, uma vez que é seu querer que nos faz bons e que sejamos.
Ora, como ser bons se não sabemos o que Deus quer de nós? Conhecendo a verdade, saberemos qual seu querer a nosso respeito e poderemos conformar-nos a ele, agir em conformidade com ele, e para isso é necessária uma prévia formação, instrução na fé, no mínimo indispensável a que nossa ação se oriente corretamente ao nosso fim, ao querer divino. E essa formação, por sua vez, não pode ser qualquer uma, mas deve corresponder ao querer divino, ao ser divino, digamo-lo assim, ou seja, às verdades tais quais Ele no-las revelou, com seus detalhes, sem depreciação àquilo que aparentemente nada importa em termos práticos, quando a falta de conhecimento (cf. Os 4, 6) pode facilmente desaguar em desamor e indiferença ao que há de mais nobre e elevado no ser.
IV
Julgo necessário agora atermo-nos, desde o que foi dito, a uma perspectiva pastoral, apostólica, evangélica. A Santa Igreja, sendo coluna e sustentáculo da verdade (1Tm 3, 15), tem como um de seus objetivos levar a Verdade mesma às almas, o Cristo, e tudo o que isto implica. Ela é chamada a, por meio dos sucessores dos apóstolos, sacerdotes e mesmo leigos a quem isto compete (subordinadamente aos primeiros), informar as almas com a luz da verdade, dissipando-lhes as trevas da ignorância e do erro. Isto se faz, primariamente, por meio do anúncio do Evangelho, das verdades reveladas, do amor de Deus por nós. Depois, uma vez que as almas são atraídas por este primeiro anúncio, a elas se lhes dá uma instrução formal, algo sistemática, chamada catequese, que as preparará para receber os santos sacramentos da iniciação cristã. Em ambos os casos, é necessária uma prévia informação da verdade.
Ora, nos primeiros séculos da Igreja, mais particularmente na era apostólica, pela cegueira em que se encontravam os pagãos, foi necessária a realização e manifestação de inúmeros milagres portentosos e luminosos, a fim de que, à vista da bondade e beleza deles, houvesse uma admiração, um pasmo interior, um convite a que se abrissem à verdade, àquilo que estava por trás dos milagres, enfim ao ser mesmo da coisa – Quid est?
A admiração frente à grandeza, ao extraordinário, é uma manifestação inegável do ser, mas ainda não o torna manifesto à inteligência, apenas seu mistério e sua bondade, e isso instiga a alma a alçar-se à compreensão do que se trata. “Por que eles fizeram isto? Como? O que são? O que querem?”, todas essas perguntas pegam a alma e já são fruto da abertura, quase que necessária, que provém da vista de milagres.
Na Roma antiga, e mesmo em toda a Antiguidade, a prática da magia, a crença em superstições e poderes ocultos da natureza eram praxe. Nem mesmo os deuses do panteão grego tinham total poder sobre a natureza, que era para aquela civilização uma espécie de entidade com seus mistérios e certa autonomia. Por isso, havia os chamados conhecimentos ocultos, pelos quais se conhecia como se utilizar desses segredos da natureza para atingir fins pessoais ou públicos. Os magos e adivinhos eram frequentemente consultados, sobretudo na corte e antes de batalhas importantes.
Pois bem, retornando ao início do texto, façamos a seguinte aplicação. Diante da imensidade da natureza, da carência de profundos conhecimentos técnico-científicos, matemáticos, de como certos fenômenos ocorrem, da relação causa-efeito entre eles e assim por diante, a inteligência humana não podia resignar-se com um solene “não sei”: precisava atribuir àquela massa experiencial explicações, causas, porquês.8
Essa atribuição era certamente deficiente em vários sentidos, sobretudo quando o misterioso era entendido como produto do Destino (ou Fatum), duma ação divina passional (como um raio que Zeus envia à terra por cólera), ou da força de palavras que alcançariam um efeito naturalmente desproporcional a seu valor de causalidade.
Tal visão de mundo não é outra coisa do que um modo errôneo de enxergar o ser, ou dito de outro modo, uma concepção falsa da inteligência, não correspondente à verdade ou ao ser mesmo das coisas. Os pagãos estavam submersos no erro, na ignorância, porque ignoravam o que era aquilo que tinham diante de si: a realidade, o ser, ao atribuir-lhe propriedades que não lhe pertencem em absoluto, ou quididade com que não se identifica.9
Como então estavam cegos para o ser, porque não o viam de verdade, muitos atribuíam aos milagres dos Apóstolos e seus discípulos não uma intervenção divina que comprova a veracidade de suas palavras e a virtude de quem as diz – pois os falsos deuses não interviriam a favor de quem se lhes mostra contrário –, mas mera magia, rituais supersticiosos e eficazes, tais como os dos magos do Faraó diante de Moisés. Certamente, isso explica, em parte, por que um Diocleciano, um Daciano, um Pilatos, um Nero, ao ver tantos e tantos prodígios magníficos e estrondosos, não se rendiam à verdade: apegando-se ao erro, a manifestação da bondade não reluzia a seus olhos, porque seus corações, endurecidos, não queriam enxergar.
A bondade devia abrir-lhes o ser e à verdade mediante a submissão de seu coração, e precisamente porque este estava endurecido é que se apegaram a seus erros e interpretaram o óbvio à sua tenebrosa luz, de forma a não ver nele senão o que ele não era. No fundo, então, pode concluir-se que quem se fecha à verdade se fecha também ao ser e à bondade, à beleza.
Não obstante a unidade e identidade entre os transcendentais, há certamente, hoje, a necessidade urgente e absoluta de focar-se na pregação da verdade com ênfase e firmeza, tal qual ela é, pois a alma contemporânea se encontra submersas no erro tanto quanto os antigos. Diante da beleza de uma montanha, do céu azul, duma catedral, não se deixa convencer da Sabedoria divina: atribui-lhe outra causa, entende-a como uma realidade puramente material, ou relativa; diante da bondade de uma Santa Teresa de Calcutá, de uma Santa Dulce dos Pobres, enxergam filantropia, solidariedade, algo puramente humano (o que, em certo sentido, não seria verdadeira bondade, e portanto não alcançaria o ser mesmo da coisa); diante da grandeza da virtude, um modo de ser com que se nasce e que tem quase o mesmo valor que a pusilanimidade. Chama-se de amor o que é apenas egoísmo; de família o que não passa de uma aberração pública; de direito de escolha o que é a tentativa de legitimar um assassinato, etc.
Ninguém enxerga tão bem a realidade quanto o Santo, porque ele a vê tal qual ela é. Aqui, alça-se já ao ser por via de amor; antes, porém, foi preciso crer, instruir-se, saber o que a fé nos ensina, o que Cristo nos ensina por meio de sua Santa Igreja. Não à toa o curso normal da santidade começa na chamada oração vocal, depois mental ou discursiva, pela qual a inteligência é iluminada para então a vontade ser convidada; e só muito depois é que se vai a alma direcionando à contemplação, que é um gozo, uma fruição da verdade. A plenitude do amor condiciona-se à iluminação que a verdade transfunde no coração. Sem luz, o coração não sabe aonde ir; fica pois perdido.
Como conclusão, fica consignado que não é suficiente apenas praticar obras de caridade, ir ao encontro dos mais necessitados, ajudá-los, assisti-los, criar projetos de acolhimento e abrigo e assim por diante: é necessário que a bondade seja acompanhada da proclamação da verdade para que o apostolado se torne mais dócil à ação do Espírito Santo. É preciso que se saiba que o que se faz é feito por amor a Jesus, e não por mera filantropia, o que Bill Gates também faz.
Evidentemente, não é que é preciso ao leigo evangelizar com palavras onde isso não seria bem recebido ou não conviria; a sua bondade e o seu exemplo certamente moverão, porém, tão logo alguém se sinta impelido pelo exemplo, deve-se mostrar-lhe os fundamentos, aproveitar a situação para proclamar a verdade. Tampouco se deve pensar que o simples proclamar a verdade será suficiente, mas saiba-se: o Sacerdote que prega a doutrina sem respeito humano e com coragem e firmeza converte muito mais almas do que aquele que se mete em milhares de obras sociais e não diz uma palavra de doutrina. Disse Nosso Senhor: “Vós sois luz do mundo e sal da terra”, e não apenas “sal da terra”. E que isso nos sirva de advertência.
Nota do Editor: Se o leitor de Curitiba e região encontrou dificuldades para compreender o texto, recomendamos a participação semanal em nosso Curso de Filosofia Tomista.