Em 12-13 de maio de 1974, o divórcio foi confirmado na Itália por um referendo que viu prevalecer o “não” à revogação da lei do divórcio de 1970, com 59,3% dos votos. Os resultados do referendo, segundo as mídias de massa, revelaram a existência de um país agora “avançado” no campo dos “direitos civis”, como os Estados Unidos, a Inglaterra e a Escandinávia. “La Stampa”, o jornal da família Agnelli, no dia 14 de maio tinha como manchete de página inteira: “A Itália é um país moderno. vence o NÃO, o divórcio permanece”.
Na realidade, o sentimento católico ainda era forte no país. Muitos italianos votaram a favor do divórcio para respeitar o princípio da “liberdade de consciência”, seguindo o sofisma segundo o qual o casamento permanecia indissolúvel para aqueles que assim o acreditavam, mas dava a possibilidade do divórcio a quem não acreditava nele. Todavia, o problema não dizia respeito à vida dos indivíduos, mas aos fundamentos mesmos da sociedade que tinha o casamento indissolúvel como seu pilar. O colapso deste fundamento levou rapidamente à desintegração da família como instituição social.
Poucos compreendiam que o divórcio era apenas a primeira etapa de uma dinâmica revolucionária que não iria parar. Não por acaso, no final de 1973, o pai da lei do divórcio, Loris Fortuna, maçom e deputado socialista, apresentou ao Parlamento o primeiro projeto de lei para a descriminalização parcial do aborto. A campanha abortista foi inaugurada imediatamente depois dos resultados do referendo de 1974. Esta campanha se inseria no quadro das duas revoluções culturais de abrangência planetária: o Concílio Vaticano II (1962-1965) e a revolta estudantil (1968). A Itália também tinha o principal partido comunista ocidental, que nas eleições regionais de 1975 e depois nas eleições políticas de 1976 obteve um sucesso sem precedentes.
A existência de uma Itália católica com raízes ainda profundas era confirmada pelo fato de que o PCI, na sua marcha de conquista do poder, afirmava que queria entrar no governo “com”, e não “contra”, os católicos. Era a estratégia do compromisso histórico, teorizada por Enrico Berlinguer. Esta estratégia previa que, enquanto o PCI apertava a mão dos católicos, uma minoria agressiva trabalharia para minar as leis conformes a ordem natural e cristã. Os comunistas e socialistas ajudaram o Partido Radical de Marco Pannella a recolher assinaturas para um referendo que visava abolir toda norma anti-aborto do nosso ornamento jurídico, mas o seu objetivo era constranger os Democratas-Cristãos a firmar um compromisso sobre o aborto no Parlamento. Em dezembro de 1975, o Presidente do Conselho de Ministros, Aldo Moro, declarou a neutralidade do governo no tema do aborto. A proposta de lei unificada abortista, graças à desistência dos deputados do DC nos trabalhos das comissões, chegou às salas da Câmara e do Senado onde foi aprovada definitivamente em 19 de maio, com as deserções determinantes da Democracia-Cristã. No Diário Oficial de 22 de maio de 1978, a lei nº 194, que autoriza o homicídio, foi promulgada com a assinatura de todos os parlamentares democratas-cristãos, a começar pelo presidente da República Giovanni Leone e pelo primeiro-ministro Giulio Andreotti.
Naqueles anos, a Aliança pela Vida, associação ligada à Aliança Católica e presidida por Agostino Sanfratello, lutou vigorosamente contra o aborto, denunciando a deserção dos deputados católicos e organizando a primeira conferência internacional pró-vida, que teve lugar em Roma de 25 a 27 de abril de 1980 . A partir daí, a traição dos democratas-cristãos passou a ser acompanhada pela dos bispos italianos. Nos últimos cinquenta anos, todos os diretores do jornal episcopal “Avvenire”, de Angelo Narducci (1969-1980) a Pier Giorgio Liverani (1981-1983), de Dino Boffo (1994-2009) a Marco Tarquinio (2009- 2024), seguindo as diretivas da Conferência Episcopal Italiana, tiveram na sua mira, como seus piores inimigos, não as forças abortistas, mas as forças anti-aborto que sistematicamente denegriram ou ignoraram. O primeiro destes diretores, Angelo Narducci, eleito para o Parlamento Europeu em 1979, em 18 de julho do mesmo ano contribuiu, com o seu voto, para a eleição de Simone Veil, a promotora da lei do aborto na França, como presidente da assembleia. O último diretor, Marco Tarquinio, em uma entrevista concedida em 15 de junho de 2024, um dia após sua eleição como eurodeputado, criticou a primeira-ministra Giorgia Meloni por excluir a palavra “aborto” dos documentos finais do G7 recém-concluído.
A partir de 1981, os líderes políticos e eclesiásticos encontraram o seu homem de confiança num magistrado florentino, Carlo Casini, a quem confiaram a tarefa de dirigir o recém-nascido Movimento pela Vida. A instrução foi precisa: evitar de todos os modos o confronto político e ideológico sobre o aborto, substituindo o slogan “Não ao 194” por “Sim à Vida”. Sobretudo, era necessário evitar manifestações de rua que pudessem escapar ao controle dos líderes, como as Marchas pela Vida que estavam nascendo em quase todo o mundo. Casini, fiel às instruções, foi recompensado com um assento parlamentar na Câmara dos Deputados e, durante muitos anos, no Parlamento Europeu, enquanto a CEI assegurava seu apoio financeiro ao Movimento pela Vida.
No início de 2000, alguns jovens intelectuais católicos, como Francesco Agnoli e Mario Palmaro, começaram a questionar a estratégia derrotista do Movimento pela Vida, enquanto Giuliano Ferrara com o partido “Aborto? Não, obrigado“, tentava, sem sucesso, dar vida ao debate no Parlamento. A CEI tentou assumir o controle da situação organizando, em maio de 2007, um grande Family Day que, apesar do fracasso, se revelou como um fogo de palha. Assim nasceu, como uma flor no deserto, sem negociações com o topo, a Marcha Nacional pela Vida que, depois de uma feliz estreia em Desenzano em 2011, ocorreu regularmente durante dez anos consecutivos em Roma, sob a liderança de Virginia Coda Nunziante, manifestando o slogan “Não ao aborto, sem exceções e sem conchavos”.
Enquanto isso, o neurocirurgião de Brescia Massimo Gandolfini, com um grupo de colaboradores provenientes, como ele, do Caminho Neocatecumenal, se colocou como interlocutor do mundo político e eclesiástico mais sensíveis às questões da vida e da família. Gandolfini, com o ex-deputado do PD Mario Adinolfi, no dia 20 de junho de 2015 em Roma, na Praça San Giovanni, promoveu um novo Family Day, mas não conseguiu replicá-lo nos anos seguintes. Adinolfi também não teve sucesso com o partido “O povo da Família” que fundou. A pandemia de 2020-20021, que dividiu os católicos pro-life em questões de ordem sanitária, levou Virginia Coda Nunziante a deixar a presidência da Marcha pela Vida, que havia fundado com Francesco Agnoli dez anos antes. À frente da nova “Manifestação pela Vida”, que ocorreu em 22 de junho de 2024, está Massimo Gandolfini, que em março de 2019, participando no Congresso das Famílias de Verona, havia declarado que iria adotar a linha indicada pelo então presidente da CEI Gualtiero Bassetti: “não transforme a família numa ocasião de conflito”.
A Manifestação pela Vida de 2024 ocorreu no mesmo percurso das Marchas anteriores, mas em evidente descontinuidade com elas, na forma e no conteúdo. O objetivo de revogar a lei 194 não é mais afirmado; ademais, o cortejo foi aberto por algumas raparigas “Pon Pon” seminuas, que deram à manifestação o tom de uma “kermesse” desprovida de vigor moral e espírito combativo. Será este o futuro do movimento pro-life na Itália? Não se trata de polêmica inútil. A maior caridade que se pode dar ao próximo é sempre a da verdade, sobretudo quando estão em jogo a vida humana e o bem das almas.
Fonte: Roberto de Mattei