Dom Alcuin Reid é o prior fundador do Monastère Saint-Benoît em Brignoles, Provence, França. É um estudioso litúrgico de renome internacional.
Errado, Professor Grillo – Pense novamente!
Em meio às ‘guerras litúrgicas’ de mais de uma década atrás, o Padre John Baldovin SJ publicou um artigo: “Ídolos e Ícones: Reflexões sobre o Estado Atual da Reforma Litúrgica”. (Worship 2010, n. 5) Ele argumentou que alguns eram dados à idolatria de certas formas rituais, queixando-se de ter encontrado “um paradoxal tipo de narcisismo em certas atitudes em relação à liturgia onde as pessoas pensam que estão lutando por mais transcendência ao mesmo tempo que promovem uma atitude idólatra para com a própria liturgia”. Seguindo ao fenomenologista francês Jean-Luc Marion, Baldovin argumenta que a liturgia deveria, em vez disso, ser icônica, de modo que (nas palavras de Marion) “o ícone não resulta de uma visão, mas a provoca… [ele] convoca a visão ao deixar o visível ser saturado pouco a pouco com o invisível”. Baldovin continua a citação: “No ídolo, o olhar do homem está congelado em seu espelho; no ícone o olhar do homem perde-se no olhar invisível que o contempla visivelmente”. (p. 389)
O Padre Baldovin tem o cuidado de afirmar que não considera, em si, o “rito romano tradicional como idólatra”, mas que pensa que “a atitude de insistir nele ou num retorno a muitas das suas características à la ‘reforma da reforma ‘ é idólatra” no sentido descrito acima. Ele faz uma boa observação: a Sagrada Liturgia não é um ídolo morto para ser adorado. É, de fato, um ícone vivo para o qual o nosso olhar é atraído, transformando-nos e formando-nos naquilo que é “fonte e cume” de toda a vida cristã.
Sua importante distinção veio à mente quando li a recente entrevista de Andrea Grillo com Messainlatino. Pois se alguma vez houve um exemplo de idolatria de certas formas rituais, e “um paradoxal tipo de narcisismo em certas atitudes em relação à liturgia onde as pessoas pensam que estão lutando por mais transcendência ao mesmo tempo que promovem uma atitude idólatra para com a própria liturgia”, está aqui. O professor Grillo faz parte disso!
Pois se há uma coisa que sabemos com certeza – graças a um jornalismo investigativo muito diligente – é que o atual reinado de terror autoritário contra o usus antiquior do rito romano (as formas litúrgicas pré-conciliares da Missa, dos sacramentos, dos sacramentais, etc.), para os quais quase se poderia chamar o bom professor Grillo de assessor de imprensa, nasce precisamente de uma idolatria narcisista para com as reformas litúrgicas promulgadas depois do Concílio. Elas são esculpidas em pedra. Não é permitido falar delas, e falar do seu abandono em favor do uso vivo e crescente do usus antiquior é simplesmente uma abominação que não pode mais ser tolerada – é sugerir o impensável: que todo o sangue, suor e lágrimas derramados pela mudança na liturgia não era, no final das contas, necessário. E a ninguém pode ser permitido dizer isso.
Com efeito, isto é considerado uma tão grande abominação, que um grupo de cardeais idosos em Roma, a maioria sem ministério pastoral, planejou uma estratégia de organizar uma pesquisa com os bispos do mundo em 2020. Seria como perguntar aos políticos se eles gostariam de um aumento salarial, exceto que, até onde sabemos, muitos deles disseram que não queriam! Ou seja, os vazamentos que tivemos dos resultados não publicados da pesquisa sugerem que os bispos de todo o mundo não consideram o usus antiquior como um problema. Ele não era adorado como um ídolo, senão que contribua servindo como um ícone d’Aquele a quem todos somos chamados a adorar.
Suas Eminências, porém, não seriam dissuadidas. Por bem ou por mal, o Santo Padre foi persuadido a substituir o Cardeal Sarah na Congregação para o Culto Divino pelos Arcebispos Roche e Viola e a assinar o infame Motu Proprio Traditionis custodes em julho de 2021 – com os capangas já posicionados para garantir a sua impiedosa implementação. A reforma litúrgica que se seguiu ao Concílio, que o Papa curiosamente achou necessário em 2017 afirmar “com certeza e com autoridade magisterial” como “irreversível” foi estabelecida como a “única expressão da lex orandi do rito romano” (ou seja, a única forma verdadeiramente legítima de culto) à qual os recalcitrantes que recorrem ao usus antiquior deveriam ser convertidos, por coerção se for necessário – “na busca constante da comunhão eclesial”, como Traditionis custodes insiste. Alguns atribuíram a curiosa expressão “a única expressão…” à influência do professor Grillo. Que eu saiba, ele nunca confirmou isso, mas se a carapuça servir…
O Arcebispo Roche não perdeu tempo em afiar Traditionis custodes com esclarecimentos stalinistas em nome do Santo Padre, como insistir que os coroinhas do usus antiquior tivessem a permissão do bispo diocesano e que tais missas não fossem anunciadas nos boletins das paróquias, etc., com intenção declarada de que todos fossem levados à “única expressão da lex orandi do Rito Romano”. A batalha para este fim tem sido constantemente travada desde então, com a perspectiva de um outro ato legislativo para liquidar de uma vez por todas com o usus antiquior, que é o que está sendo noticiado atualmente.
Em meio a tudo isso, o Professor Grillo tem se mostrado presunçosamente confiante em sua suposição de que aqueles que, como o Papa Bento XVI notou, “descobrem esta forma litúrgica [o usus antiquior], sentem-se atraídas por ela e nela encontram uma forma, que lhes resulta particularmente apropriada, de encontro com o Mistério da Santíssima Eucaristia” são de fato, como afirma na sua entrevista, pessoas retrógradas que não compreendem o significado da tradição; que formam “pouco mais que uma seita que vive a infidelidade como uma salvação, muitas vezes ligada a posições morais, políticas [presumivelmente ele se refere às más] e costumes muito preocupantes”; e que “cultivam a nostalgia do passado”.
Incluídos nesta calúnia condenatória estão os mais de 18.000 peregrinos de Chartres (“o futuro da Igreja na França”, segundo um bispo diocesano francês), as fiéis e heróicas famílias católicas que ousam ter filhos e criá-los com as formas litúrgicas tradicionais, os seminários, mosteiros e casas religiosas onde o usus antiquior é o coração vívido e pulsante e, claro, qualquer acadêmico que se atreva a defender o seu valor perene. Todos são membros de “um clube ou associação da alta sociedade que visa falar uma língua estranha ou se identificar com o passado, cultivando ideais reacionários”. O uso da “língua morta”, o Latim, é depreciado (apesar de o Concílio Vaticano II ter insistido que fosse mantido) e até mesmo a pobre cappa magna (o trem cerimonial para bispos e cardeais que ainda é uma opção presente nos livros litúrgicos reformados) está condenado – tudo porque “A tradição não é o passado, mas o futuro”.
Se esta entrevista não fosse com um professor de uma Universidade Pontifícia Romana e de uma importante faculdade litúrgica italiana, cujas ideias parecem ter alguma influência sobre as políticas da Santa Sé no presente, isso seria eminentemente descartável. Mas como o Professor Grillo está de fato em tais lugares, os seus delírios risíveis são muito importantes – pela pura falta de profundidade teológica e ausência de sensibilidade e experiência pastorais demonstradas e, sobretudo, pela sua exposição do puro terror que os partidários do usus recentior têm pelo usus antiquior.
Ironicamente, o professor Grillo reclama em voz alta da argumentação fadada ao fracasso. Tomemos a sua afirmação fundamental de que “A tradição não é o passado, mas o futuro”.
Nosso Senhor ensinou que “Por isso, todo escriba instruído nas coisas do Reino dos Céus é comparado a um pai de família que tira de seu tesouro coisas novas e velhas”. (Mt 13,52) O Papa Bento XVI, ao esclarecer que o usus antiquior nunca havia sido ab-rogado e, portanto, sempre foi, em princípio, permitido, e ao reconhecer o seu valor pastoral no século XXI e libertando-o de qualquer restrição, agiu em conformidade: boa teologia e boa prática pastoral.
A tradição não é o passado nem o futuro – exclusivamente. A tradição é a presença viva na Igreja hoje de tudo o que foi transmitido pelos Apóstolos e desenvolvido ao longo dos séculos na vida da Igreja, no seu culto, na sua doutrina e nos seus costumes. Em primeiro lugar, inclui obviamente aquilo que foi diretamente revelado por Deus, do qual a Sagrada Escritura é um testamento singularmente privilegiado e inspirado. Mas a Sagrada Liturgia é o lugar onde esta tradição vive, onde as Escrituras são lidas em contexto, onde oferecemos os nossos primeiros frutos ao Deus Todo-Poderoso, adorando-O da melhor maneira que podemos (como as magníficas, mas diversas, formas de arquitetura eclesiástica, a música litúrgica, as vestimentas e outras formas de arte litúrgica demonstram). Os próprios ritos da liturgia e as coisas que lhe são empregadas se tornam sacramentais – coisas privilegiadamente criadas para refletir a santidade de Deus através do seu uso em Sua adoração. Não podem ser tratados profanamente ou descartados à vontade.
É por esta razão que, como nos lembrou um documento pontifício recente, os papas e os bispos são “custodiadores da tradição”, o que implica tudo o que um papa anterior ensinou quando, a respeito do ofício papal (e mutatis mutandis da Sagrada Liturgia), disse isso:
“O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar, na Igreja, obriga a um compromisso ao serviço da obediência à fé. O Papa não é um soberano absoluto, cujo pensar e querer são leis. Ao contrário: o ministério do Papa é garantia da obediência a Cristo e à Sua Palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à Igreja à obediência à Palavra de Deus, tanto perante todas as tentativas de adaptação e de adulteração, como diante de qualquer oportunismo”. (7 de maio de 2005)
Por isso é difícil aceitar o positivismo puro que sublinha a idolatria do Professor Grillo pelas reformas pós-conciliares. As formas litúrgicas anteriores eram “sagradas e grandes” e certamente podem ser “sagradas e grandes” também hoje. O fato de isto aterrorizar aqueles que apostaram as suas reputações e carreiras num ato questionável de positivismo papal (a imposição de novos ritos que não são aqueles que o Concílio solicitou e que não estão em continuidade orgânica com a tradição litúrgica desenvolvida ao longo dos séculos) e o fato de estarem alimentando a imposição oportunista da sua ideologia, visto que têm a capacidade política para o fazer, não altera a verdade de que a Tradição, embora de fato se desenvolva, fá-lo organicamente, por enriquecimento, e não por reforma radical ou substituição.
Caso contrário, nada é verdade, nada tem valor – tudo é simplesmente uma questão de conveniência política. É por isso que o Papa Bento XVI não errou ao ensinar que “aquilo que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser de improviso totalmente proibido ou mesmo prejudicial”, e que “faz-nos bem a todos conservar as riquezas que foram crescendo na fé e na oração da Igreja, dando-lhes o justo lugar”.
Deve-se esclarecer que isto não significa que um papa não possa propor legitimamente um novo desenvolvimento ou rito litúrgico como fez Paulo VI. Mas ele precisa conquistar o seu lugar na Tradição pelos seus próprios méritos, por assim dizer, e não através da imposição positivista da autoridade. Tampouco pode ser sustentado com subsídios desonestos. Se se tornar parte da Tradição, que assim seja. Se sofrer o destino do inovador breviário do século XVI do Cardeal Quignonez – apoiado durante décadas pelo suporte papal antes da sua tão esperada morte – então que assim seja também. Em contrapartida, deve-se dizer que se um rito continua vivendo e respirando e produzindo bons frutos mesmo diante da oposição papal, fica muito difícil negar que ele tem um lugar legítimo na tradição viva da Igreja hoje e no futuro.
A falta de perspicácia pastoral do professor Grillo é surpreendente. Ele parece ter experimentado o usus antiquior somente através da internet e ter reagido (talvez corretamente) a algumas celebrações extravagantes e às vezes curiosamente antiquadas dele. Se pelo menos ele, o Cardeal Roche e o Arcebispo Viola passassem o fim de semana de Pentecostes caminhando de Paris a Chartres com os milhares que peregrinam todos os anos, encontrariam católicos comuns, católicos heroicamente fiéis de todas as idades (mas principalmente jovens), para os quais os tesouros dos ritos mais antigos são hoje sempre novos, alimentando-os em suas diversas vocações cristãs. Claro, haveria algumas pessoas estranhas e clérigos, mas o usus antiquior não tem direito de exclusividade sobre eles – e eles também têm almas que precisam de salvação.
O Professor, Sua Eminência e Sua Excelência também encontrariam ricas celebrações da Sagrada Liturgia, nas quais estes milhares participam plenamente, conscientemente, ativamente e frutuosamente com grande devoção – como é manifesto pela profunda reverência com que recebem a Sagrada Comunhão (independente do tempo). Isto, claro, é uma heresia para os nossos idólatras que acreditam que os ritos litúrgicos reformados são condição sine qua non para tal participação. Mas é aqui onde eles são pastoralmente ingênuos. A grande maioria das celebrações do usus antiquior evidenciam hoje tudo o que o movimento litúrgico clássico e os Padres do Concílio Vaticano II de fato desejavam. Certamente, estes últimos exigiram algumas reformas moderadas e orgânicas do rito para facilitar que isso acontecesse, mas não foram tão estúpidos a ponto de acreditar que estas reformas eram fins em si mesmas, ou que deveriam ser idolatradas.
A participação plena, consciente, ativa e fecunda na Sagrada Liturgia era o que o Concílio almejava, e aqueles que se recusam a reconhecer que isto é hoje frequentemente encontrado nas celebrações dos ritos não reformados, estão simplesmente negando a verdade. É uma realidade nas paróquias, nos mosteiros, nas casas religiosas e nos seminários de todo o mundo; está à vista de todos, incluindo o Professor e os seus amigos. Gostaria que eles abrissem os seus olhos para o bem que esses ritos trazem, e o encorajassem e promovessem!
Questionar os julgamentos prudenciais de um Papa depois do Concílio (e é isso que a reforma litúrgica de Paulo VI é – uma série dos seus próprios julgamentos prudenciais) não é rejeitar o próprio Concílio, como afirma o professor Grillo. São coisas distintas. Aplicar o princípio fundamental da sua constituição litúrgica (sobre a participação) nas celebrações dos ritos litúrgicos mais ricos e não editados é, não obstante, honrar os desejos mais acalentados do Concílio (um desejo expresso por tantos, desde Dom Guéranger no século XIX em diante). Desculpe, professor, mas isto está muito longe de negar o Concílio Vaticano II.
E também não, necessariamente, se aplica à celebração dos ritos da Semana Santa anterior às reformas de Pio XII. Para o professor Grillo, quem o faz “coloca-se objetivamente fora da tradição católica”. O nosso pequeno mosteiro recebeu a permissão da Santa Sé para usá-los e, ao fazê-lo, descobriu a sua riqueza e beleza – um tesouro que simplesmente não podemos enterrar novamente. Posso concordar com o Professor que a escolha da data preferida na linha do tempo da reforma litúrgica pode ser arbitrária, causar confusão e mostrar falta de espírito eclesial, mas quando a autoridade da Igreja autoriza algo como um bem hoje (como o fez), é muito difícil ver como a mesma autoridade pode, de repente, proibi-lo totalmente ou considerá-lo prejudicial.
É difícil concluir sem contestar profundamente a afirmação do professor Grillo de que os seminários ‘tradicionais’ “geram não uma vida de fé, mas muitas vezes um grande ressentimento e rigidez pessoal”. Pode-se concordar que se encontram professores e candidatos estranhos nos seminários – em praticamente todos eles. Narcisistas inseguros espreitam em muitas salas de faculdades, escritórios prestigiados e chancelarias; eles também de nenhuma forma são propriedade exclusiva dos ‘tradicionalistas’. E há seminaristas que abandonam os seminários, e às vezes também a fé católica, com grande ressentimento e, de fato, com pouca vida de fé. Mas novamente: não se trata de “direitos autorais” dos ‘tradicionalistas’. Onde estes abusos e problemas existem, eles precisam ser abordados de forma decisiva e geral.
Mas o que também deve ser abordado – e aceito como verdadeiro e respeitável – é que há dezenas de formadores e centenas de candidatos nos ditos seminários, mosteiros e casas religiosas tradicionais que lutam diariamente pela santidade, pela conversão de suas vidas, pelo crescimento nas virtudes, pelo aumento na sua capacidade de cumprir fielmente a missão da Igreja no mundo de hoje e no futuro, pastoralmente e intelectualmente, etc. Esses bons homens e mulheres não buscam preservar as cinzas de uma época passada, senão inculcar dentro de si o fogo daquela Tradição viva que é o Evangelho de Jesus Cristo. Eles não são parte dos problemas da Igreja; pelo contrário, constituem uma parte significativa da solução para o confronto até agora desastroso da Igreja com um mundo pós-cristão.
Neste momento da história da Igreja, é difícil acreditar que os seus hierarcas estejam narcisicamente fechando congregações e comunidades jovens tão prósperas e em crescimento, ou forçando-as à irregularidade canônica, ou pior ainda, expulsando da Igreja, em nome de uma desejada unidade que, na verdade, nada mais é do que uma insistência politicamente motivada na uniformidade, com o fim de apaziguar o ídolo da sua escolha: a liturgia (envelhecida e não tão bem) reformada. E é um escândalo que professores de institutos pontifícios renomados apoiem tais esforços. Todos fariam bem se seguissem o conselho de Gamaliel: “Não vos metais com estes homens. Deixai-os! Se o seu projeto ou a sua obra provém de homens, por si mesma se destruirá; mas se provier de Deus, não podereis desfazê-la. Vós vos arriscaríeis a entrar em luta contra o próprio Deus!” (Atos 5:38-39)
Fonte: Rorate Caeli