Karl Marx havia dito no início de 18 Brumário de Luís Bonaparte: “A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Muitos dos nossos intelectuais e líderes católicos, que têm o dever de bem conhecer o passado, por ora consta contra eles a acusação de “farsantes” nos registros do Supremo Juiz, a serem lidos no dia derradeiro. E não me refiro aqui a prelados ou sacerdotes da instituição eclesiástica.
Este fim de 2021 tem um gosto de fim de 1916, pois se aquele foi uma tragédia, este tem tudo para ser uma farsa. Qualquer um que interrogue a magister vitæ saberá que é uma ingenuidade tomar a Revolução Russa como um levante de massas operárias manipuladas por intelectuais desonestos, pois o pobre Nicolau Romanov também tinha ao seu dispor intelectuais e apoiadores incondicionais, mais convictos de suas crenças do que os comunistas eram das deles. Me refiro aqui às Centúrias Negras: grupos de militantes e intelectuais apoiadores do regime czarista que criaram várias organizações de militância na década de 1900.
Estes grupos em muito eram semelhantes aos nossos apostolados, institutos e comunidades atuais, tanto na defesa da tradição, em seus posicionamentos conservadores e/ou reacionários, quanto, infelizmente, também por seus defeitos. Após o espasmo revolucionário de 1905 (que, diga-se de passagem, não foi mais do que o resultado da covardia do imperador e da estupidez de alguns oficiais da Guarda), as Centúrias Negras foram às ruas para defender o Czar, a fé e a Rússia e, inicialmente, fizeram um bom trabalho, conseguindo junto com o plano político do brilhante Stolypin, apaziguar os ânimos populares entre 1907 e 1914. As Centúrias organizavam comícios, publicações, eventos, campanhas e todo tipo de atividade de difusão para minar o avanço das ideologias socialistas no vasto Império; chegaram até mesmo a organizar alguns congressos nacionais. A Revolução Russa, entretanto, já era ela própria a repetição farsesca da Francesa: meio século antes dos problemas começarem em Petrogrado, Gobineau – o risível teórico histriônico do racismo científico que conseguiu até ser expulso do Brasil (!) – já expressava a sua desilusão com os legitimistas (contrarrevolucionários franceses), escrevendo que o sectarismo e a inépcia dos líderes (e por extensão de todo o movimento) havia condenado a causa à ruína. Talvez isso explique a degeneração desta pobre alma e deste intelecto inchado. De qualquer forma, fato é que as Centúrias Negras padeceram pelas mesmas doenças.
Não faltavam recursos a nossos congêneres russos: na virada do século, intelectuais muito profícuos, como Konstantin Pobednostsev e Mikhail Katkov, escreviam livros e artigos em jornais que tentavam explorar o âmago da alma russa (embora suas análises tenham um certo vício), melhoras econômicas eram trazidas por um vai-e-vem de reformas de Nicolau e seu avô Alexandre II, e o povo russo ainda era em sua maioria extremamente conservador e devotado à religião e ao czar (basta lembrar que na marcha do Domingo Sangrento via-se ícones e estandartes processionais, ouvia-se o hino nacional e hinos ortodoxos, e na petição levada pelos operários grevistas a Nicolau, eles se referiam a ele como “papai”). Não é a ocasião, mas vale funestamente mencionar que estas vantagens eram – que ironia – bem maiores para nossos camaradas franceses na época deles.
À vista das últimas investidas contra as tradições litúrgicas católicas, é como se as gargantas da terra nos engolissem hoje. Estas investidas são apenas a nuvem mais negra nos céus deste nosso dezembro de 2021, mas não são a única delas. Também há as eleições nacionais de 2022, as variantes de coronavírus cujas nomenclaturas vão esgotar o alfabeto grego (assim como os desmandos políticos que com elas vêm), e sabe-se lá quantas reviravoltas na política internacional. Enquanto o mundo desaba lá fora, dentro de casa reina o caos.
Aparentemente não se pode mais apelar para o pai da Fé com a mesma fé filial cega com que os operários petersburguêses apelavam ao czar. Fiéis que amam a sua Fé, a quem apelar, em quem confiar senão uns nos outros? Sejamos realistas: como estamos mais próximos de uma reunião das Centúrias Negras do que de uma comunidade dos primeiros cristãos, cujo amor mútuo maravilhava até os pagãos que os perseguiam! Entre nós, dominam o sectarismo e a inépcia travestidas de heroísmo. “Só nós defendemos a Missa Tridentina!”, “o Instituto X é modernista!”, e outras frases do tipo são os emblemas mais notórios da mentalidade soberba que une alguns dos nossos patrícios de hoje com as ralés reacionárias da Moscou dos anos 1900 e os círculos de aristocratas afetados de Paris dos anos 1840. Esta é a mentalidade do fracasso das causas mais legítimas, nobres e santas; este é transformador das tragédias do nosso passado nas farsas do nosso futuro. Não seria nem necessário interrogar o passado, qualquer um com a mínima inteligência pode imaginar que resultados tal postura deverá produzir à Barca de Pedro (ou bote salva-vidas de Pedro) nestes tempos tempestuosos.
É sensato se fechar em guetos quando tantos outros veneram a mesma tradição e o mesmo legado apostólico? É sensato trocar acusações mútuas quando esta mesma tradição está em risco? É sensato declarar persona non grata e promover a damnatio memoriæ de quem discorda “uma vírgula” de nossa cartilha totalizante política, teológica, social e econômica? Se o que há em comum é a promoção da Missa Tridentina, para que tais declarações de guerra de uns apostolados contra os outros em razão de quaisquer ninharias de outras ordens?
Pessoalmente, me parece óbvio que assegurar a existência de uma comunidade de fé em torno da lex orandi de sempre é a única coisa sensata que deve ser exigida dos líderes de movimentos na atual conjuntura. Não há espaço para sectarismos toscos, para a pretensão de possuir, dever impor e cobrar uma “verdade” que nossos iguais supostamente não possuam. Afinal, no essencial todos estão concordes; há então motivos sensatos para haverem divisões sectarias tão tolas entre os intitulados católicos tradicionalistas?
Não é necessário sequer contar toda a história para que o leitor saiba qual foi o fim das Centúrias Negras. Após um início possante, o sectarismo entre os líderes de movimentos levou primeiro os congressos nacionais ao fracasso; depois, os números de adeptos diminuíram pouco a pouco até os anos fatídicos da inesperada I Guerra Mundial (tão inesperada quanto nosso contemporâneo coronavírus: mais uma ironia) e, por fim, as organizações foram fechadas com a Revolução de 1917. Seus membros, outrora tão bem munidos de recursos para impedir que a situação chegasse a tal estado, foram mortos na guerra civil ou exilaram-se para jamais ver a velha Rússia livre novamente. Eis a farsa tão facilmente evitável, tendo bastado apenas a boa e velha humildade e a resignação em favor de um bem maior – e isto é até catecismo. Acredito que não seja necessário explicar as utilidades sociais, à guisa das espirituais, de tais virtudes aos católicos a quem falo.
A lenha que alimenta a fogueira das vaidades é a da ignorância. Ignorância da história, de si mesmos, da situação, não importa qual seja. É necessário apenas que cada um, principalmente aqueles em posição de comando, assumam-na e, com efeito, deixem de alimentar a própria vaidade, que produz a fumaça fétida do sectarismo. Esta, ardendo no interior da Igreja, torna ainda mais espessa a atmosfera que a fumaça de satanás, vinda de fora, já cria.
Não pensem, pois, os capitães da tradição, que fazem um grande serviço a esta própria tradição criando cizânias e desentendimentos entre os fiéis que a veneram. Eles possuem recursos senão para conseguir a vitória nesta vida, ao menos para serem coroados de glória heróica na Vida Vindoura. Dou o meu sincero conselho filial para que não malversem estes recursos; caso contrário, farão com que se percam não apenas a si próprios, mas também o aprisco que lhes foi confiado em hora tão dolorosa. Que 2022 não seja, portanto, mais uma farsa como foram os tradicionalismos (ou o que o valha) do passado, mas a superação das maldições histórias que nos atacam dentro de nós mesmos.