São Francisco de Sales. Filotéia. Parte III: Avisos necessários para as práticas da virtude, Capítulos 8 e 9, que tratam sobre a mansidão (Os grifos são nossos).
A MANSIDÃO NO TRATO COM O PRÓXIMO E OS REMÉDIOS CONTRA A CÓLERA
O santo crisma, que a Igreja, seguindo a tradição dos apóstolos, usa no sacramento da confirmação e em diversas outras bênçãos, compõe-se de óleo de oliveira e de bálsamo, que nos representam, entre outras coisas, a mansidão e a humildade, duas virtudes tão caras a o divino Coração de Jesus e que ele nos recomendou expressamente, dizendo-nos: Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; como se unicamente por amor destas duas virtudes quisesse consagrar o nosso coração ao seu serviço e aplicá-lo à imitação de sua vida. A humildade aperfeiçoa o homem em seus deveres para com Deus; e a mansidão, em seus deveres para com a sociedade humana. O bálsamo que, misturado com outro líquido, se afunda, nos representa a humildade; e o óleo de oliveira; que fica nadando em cima, nos faz lembrar a mansidão, que faz o homem passar por cima de todo o sofrimento e que excede a todas as virtudes, porque é a flor da caridade, que, como diz S. Bernardo, só possui o auge da sua perfeição quando ajunta a virtude à paciência.
Mas hás de compreender bem, Filotéia, o que diz Jesus Cristo: que devemos aprender dele a ser mansos e humildes de coração e que este crisma místico deve estar em nosso coração; é, pois, um perigoso ardil do inimigo deter as almas no exterior destas duas virtudes.
Com efeito, muitos só possuem sua linguagem, seu ar e suas maneiras exteriores e, não examinando bem as suas ações interiores, pensam ser mansos e humildes e não o são de modo algum; o que logo se vê quando, apesar desta humildade exterior e mansidão cerimoniosa, se exasperam com um ardor e orgulho incríveis à mais leve injúria que lhes façam e à menor palavra com que os magoem de passagem.
A humildade verdadeira e a mansidão sincera são esplêndidos preservativos contra o orgulho e a ira que as injúrias costumam excitar em nós, como esse preservativo que o povo denomina “graça de São Paulo”, que faz quem o tomou nada sofra, se for mordido ou picado por uma víbora. Mas, se formos picados pela língua de serpente que tem a detração, se o nosso espírito se impregnar então de orgulho e o nosso coração se inflamar, não duvidemos que isto seja um indício evidente que a nossa humildade e mansidão não são verdadeiras nem sinceras, mas artificiosas e aparentes.
O santo e ilustre patriarca José, mandando os seus irmãos de volta do Egito para a casa de seu pai, advertiu-os assim: não brigueis no caminho. Digo-te também, Filotéia, que esta vida é uma viagem que temos que fazer para atingir o céu; não nos zanguemos no caminho uns contra os outros; andemos em companhia com os nossos irmãos, em espírito de paz e amizade. Generalizando, aconselho-te: nunca por nada te exaltes, se for possível, e nunca, por pretexto algum, abras teu coração à ira; pois Santiago diz expressamente: a ira do homem não opera a justiça de Deus.
Deve-se resistir ao mal e corrigir os maus costumes dos seus subalternos com santo ânimo e muita firmeza, mas sempre com uma inalterável mansidão e tranqüilidade; nada pode aplacar tão facilmente um elefante irritado como a vista dum cordeirinho, e o que mais diminui o ímpeto duma bala de canhão é a lã.
A correção feita só com a razão recebe-se sempre melhor do que aquela que encerra também a paixão, porque o homem se deixa levar com facilidade pela razão, a que naturalmente é sujeito, ao passo que não pode suportar que o dominem pela paixão. Por isso, quando a razão quer fortificar-se pela paixão, faz-se odiosa e perde ou ao menos atenua a sua autoridade, por chamar em seu apoio a tirania e a paixão.
Quando os príncipes visitam com suas famílias os seus Estados em tempo de paz, os povos julgam-se muito honrados com a sua presença e dão largas à sua alegria; mas, quando passam à frente de seus exércitos, esta marcha muito lhes desagrada, porque, embora lhes seja de interesse, sempre acontece, por mais disciplina que reine, que um ou outro soldado mais licencioso cause danos a muitos particulares.
Do mesmo modo, se a razão procura com mansidão seus direitos de autoridade por meio de algumas correções e castigos, todos aprovarão e a estimarão, ainda que seja com exatidão e rigor; mas, se a razão mostra indignação, despeito e cólera, que Santo Agostinho chama os seus soldados, ela mais faz-se temer que amar e perturba e oprime a si mesma. É melhor, diz Santo Agostinho, escrevendo a Profuturo, fechar inteiramente a entrada do coração à cólera, por mais justa que seja, porque ela lança raízes tão profundas que é muito difícil arrancá-las; assemelhasse a uma plantazinha que se transforma em uma árvore enorme. Não é sem razão que o apóstolo proíbe que deixemos pôr-se o sol sobre a nossa cólera, porque durante a noite ela se converterá em ódio, torna-se quase implacável e nutre-se, no coração, de mil arrazoamentos falsos; pois ninguém teve jamais a sua cólera por injusta.
A ciência de viver sem cólera é muito melhor do que a de servir-se dela com sabedoria e moderação; e, se, por qualquer imperfeição ou fraqueza, esta paixão surpreender o nosso coração, é melhor reprimi-la imediatamente que procurar regrá-la, torna-se senhora da graça e faz como a serpente que, por qualquer buraco por onde mete a cabeça, passa facilmente com todo o corpo. Mas como – hás de perguntar, de certo – qual é o melhor meio de reprimi-la?
É preciso, Filotéia, que, logo ao sentires o seu primeiro ataque, concentres todas as forças de tua alma contra ela, não dum modo brusco e impetuoso, mas doce e eficazmente; porque, como se vê, muitas vezes nas audiências dos escritores, etc., que os empregados fazem mais barulho que aqueles a quem pedem silêncio, acontece também freqüentemente que, querendo reprimir a cólera com impetuosidade, ainda nos perturbamos mais, e o coração, estando assim perturbado, não pode ser senhor de si mesmo.
Depois deste suave esforço, segue o conselho que Santo Agostinho dava em sua velhice ao jovem bispo Auxílio: Faze, costumava dizer-lhe, o que um homem deve fazer; e, se em alguma circunstância da vida tiveres razão de exclamar com David: Conturbado com grande pesar está meu olho, recorre imediatamente a Deus, dizendo com o mesmo profeta: Tende misericórdia de mim, Senhor, para que ele, estendendo a sua mão direita sobre o teu coração, lhe reprima a cólera. Significa que devemos invocar o auxílio de Deus logo que nos sentimos excitados imitando os apóstolos no meio da tempestade; e ele mandará de certo às nossas paixões que se acalmem e a tranqüilidade voltará à nossa alma.
Advirto-te ainda que faças esta oração com uma suave atenção e não com um esforço violento do espírito; esta é a regra geral que se deve observar em todos os remédios contra a cólera.
Logo que mostrares que, levada pela ira, cometeste alguma falta, repara-a sem delongas, por um ato de mansidão e brandura para com aquela pessoa contra quem te irritaste; pois, se é uma precaução salutar contra a mentira retratá-la mal a houvermos pronunciado, também, contra a ira, é um remédio eficacíssimo repará-la imediatamente por um ato de brandura: as feridas recentes são, como se afirma sempre, mais fáceis de curar do que as antigas.
Demais, quando estás com o ânimo calmo e sem motivo algum de irritar-te, faze um grande provimento de brandura e benignidade, acostumando-te a falar e a agir sempre com este espírito tanto em coisas grandes como pequenas; lembra-te que a Esposa dos Cantares não só tem o mel nos lábios e na língua, mas o tem também debaixo da língua, isto é, no peito, onde com o mel possui também o leite.
Isto nos mostra que a brandura com o próximo deve residir no coração e não só nos lábios, e que não é bastante ter a doçura do mel, que exala um cheiro agradável, isto é, a suavidade duma conversa honesta com pessoas estranhas, mas devemos ter também a doçura do leite no lar doméstico, para com os parentes e vizinhos. É o que falta a muitas pessoas, que fora de casa parecem anjos e em casa vivem como verdadeiros demônios.
A MANSIDÃO PARA CONOSCO
Um modo de fazer um bom uso desta virtude é aplicá-la a nós mesmos, não não irritando contra nós e nossas imperfeições; o motivo, pois, que nos leva a sentir um verdadeiro arrependimento de nossas faltas não exige que tenhamos uma dor repassada de aborrecimento e indignação. É quanto a esse ponto que erram muitos continuamente, agastando-se por estarem agastados e amofinando-se por estarem amofinados, porque assim conservam aceso no coração o fogo da cólera e, bem longe ele abrandar deste modo a paixão, estão sempre prestes a exasperar-se à primeira ocasião. Além de que esta ira, pesar e aborrecimento contra si mesmo encaminham ao orgulho, procedem do amor-próprio que se perturba e inquieta por nos ver tão imperfeitos. O arrependimento de nossas faltas deve ter duas qualidades: a tranquilidade e a firmeza. Não é verdade que a sentença que um juiz pronuncia contra um criminoso, com calma, é mais conforme à justiça do que aquelas que são influídas pela paixão e por um espírito irrequieto, determinando o castigo não tanto pela qualidade do crime como por sua disposição? Digo também que mais eficazmente nos punimos de nossas faltas por uma dor calma e constante do que por um arrependimento passageiro e cheio de amofinações e indignação, porque nesta excitação nos julgamos segundo a nossa inclinação e não conforme a natureza do erro cometido. Por exemplo: quem tem grande afeto à castidade sentirá amargamente qualquer golpe desferido contra esta virtude, rindo-se talvez duma grave detração em que tiver incorrido; ao contrário, quem odeia a detração há de se afligir excessivamente duma leve palavra contra a caridade, fazendo talvez pouco caso de uma falta considerável contra a castidade. Donde vem isso senão de que se julga a consciência não segundo a razão, mas segundo a paixão?
Crê-me, Filotéia, uma admoestação dum pai a seu filho, feita com uma doçura toda paternal, há de corrigi-lo mais facilmente que um castigo severo infligido num estado de irritação. De modo semelhante, se nosso coração cometer uma falta e nós o chamamos à ordem, branda e tranquilamente, com mais compaixão de sua fraqueza do que ira contra sua falta, exortando-o com suavidade a proceder melhor, este modo de agir o tocará e encherá mais de dor do que as repreensões ásperas que a indignação apaixonada lhe poderia fazer. Quanto a mim, se me propusesse evitar todo pecado de vaidade e caísse num, bem considerável, não havia de repreender o meu coração desse modo: Tu és verdadeiramente miserável e abominável, porque te deixaste seduzir pela vaidade depois de tantas resoluções! Que vergonha! não levantes mais os olhos ao céu, cego, imprudente e infiel a Deus! – quisera corrigi-lo com modos compassivos: Pois bem, meu pobre coração, eis-nos de novo caídos na cilada que tínha mos resolvido evitar! Ah! levantemo-nos de novo e livremo-nos dela para sempre; imploremos a misericórdia de Deus; esperemos que êle nos sustenha para o futuro e reentremos nos caminhos da humildade! Coragem! Deus nos há de ajudar e ainda faremos alguma coisa de bem. Sobre a suavidade desta branda correção queria eu fundar solidamente a resolução de não mais reincidir no mesmo pecado, procurando os meios conduncentes a esse fim e principalmente o conselho do meu diretor.
Se, entretanto, o coração não for bastante sensível a estas doces repreensões, convém empregar meios mais enérgicos, uma repreensão mais forte e áspera para enchê-lo duma profunda confusão de si mesmo, contanto que, depois de tratá-lo com esta severidade, se procure consolá-lo com uma santa e suave confiança em Deus, à imitação desse grande penitente que, sentindo sua alma aflita, a consolava, dizendo: Por que estás tu triste, minha alma? e por que me perturbas? Espera em Deus, porque ainda hei de louvá-lo: salvação de meu rosto e Deus meu!
Levanta-te de tuas faltas com uma grande placidez de coração, humilhando-te profundamente diante de Deus e confessando-lhe a tua miséria, mas sem te admirares disso. Que há, pois, de extraordinário que a enfermidade seja enferma, a fraqueza, fraca, e a miséria, miserável? Detesta, contudo, com todas as forças, a afronta feita à divina Majestade, e depois, com uma confiança inteira e animosa em sua misericórdia, volta ao caminho da virtude, que tinhas abandonado.