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Nostalgia da Eternidade e o instante presente – Parte II

Relógio de bolso
Por Enzeo Emmanuel dos Santos

Se pois a Beleza é tão fundamental, se ela aparece como algo determinante no amor que temos às demais criaturas, suprimi-la é criar condições a que a alma se fragmente, envelheça e morra de fome…

Dando continuidade ao meu primeiro artigo sobre a nossa nostalgia da Eternidade, gostaria de colocar ao leitor o seguinte problema: se nós podemos, com limpidez, enxergar nos bens desta vida reflexos legítimos da eternidade à qual aspiramos como fim – na medida em que Deus mesmo se confunde com a eternidade -, por que razão à primeira vista nos parece, então, que a eternidade seria algo de tedioso?

Há inúmeras formas de rastrear o problema, e uma delas é considerando-o sob o seguinte aspecto. Seguramente, porque comparamos a eternidade com a experiência que temos do tempo atual, com suas fragmentariedades e debilidades, é que pensamos que ela é tediosa ou fastidiosa. Quando experimentamos um bem ou adquirimos uma perfeição, vemos que o tempo, como Cronos a devorar seus filhos, se estende e difunde seu domínio na medida em que se alimenta das nossas perfeições, das bondades que amamos.

Diante dos bens múltiplos que supomos na eternidade, julgamos que a “infinita durabilidade” desta os sugará por completo e os tornará insuportáveis pela sua repetição e pelo desgaste que isso causaria neles e em nós. Mas é evidente que chegamos a tais conclusões quando pensamos na eternidade como o tempo sublunar estendido indefinidamente e sem novos fluxos de mudanças, na medida em que estas se contrapõem a uma monotonia geral, a um clima cinzento.

Nossa condição diária de experimentar bens perecíveis e que só podem ser desfrutados de um modo progressivo com alternações entre descansos e outras tarefas faz que não conseguimos imaginar um bem absoluto, perfeitíssimo, uno e em si mesmo imperecível e inesgotável, nem tampouco, por conseguinte, na nossa condição de fruir de suas delícias pela elevação do nosso intelecto pelo que, em Teologia, se chama lumen gloriae.

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Plasmamos, num movimento algo inverso do que o que faz quem toma por fim último uma criatura, nesse bem infinito a bondade múltipla e débil das criaturas, julgando ser impossível que ele nos possa satisfazer por toda a eternidade, dado que logo se nos tornaria repetitivo ou cansativo, como quando não queremos mais comer, por fastio, certa comida pelo número de vezes em que a comemos diariamente.

Nesse sentido, o mais próximo que teríamos de um bem permanente nesta vida seria a nossa liberdade de, vendo-nos insatisfeitos, buscar outras ordens de bens nas quais vivermos a fim de desfrutar de seus elementos progressivamente.

Mas pensemos que todos aqueles bens recordados do passado, os possíveis, os presentes e os futuros estivessem de modo perfeitamente coeso presentes atual e realmente para nós, exterior e interiormente também, e pudéssemos desfrutar desta condensação de bens imensa com todas as nossas forças, e a afirmação dessa realidade fosse tão intensa em nós que o presente parecesse suspender-se numa atualidade sublime e imóvel que nos fizesse perder a sensação de que o tempo está passando e consumindo aquelas perfeições para si.

Seria como que um presente estático de fruição perfeita num bem igualmente perfeito, por assim dizer, e a única coisa que faria então que um presente estático e o mesmo bem fruído continuamente se tornassem fastidiosos seria o fato de o tempo consumir-lhes a perfeição, de eles mesmos estarem sujeitos a isso por suas carências intrínsecas e de nós não nos subtrairmos por completo desta sua condição de debilidade, sendo nós também muito limitados.

Considerando isto, então, acrescentemos à palavra nostalgia o complemento da eternidade para seguirmos com nossa reflexão. O que seria a “nostalgia da eternidade” que às vezes parecemos experimentar na nossa vida? Esta nostalgia não é recordar um passado não vivido como se ele nos tivesse manifestado realmente, mas sentir no coração um toque da fragrância da perfeição de que aqueles momentos eram símbolos fugazes e débeis, capazes porém de remeter-nos à realidade à qual servem modestamente com suas frágeis luzes.

Dito de outro modo, nesta nostalgia vemos naqueles fatos passados uma certa semelhança com a eternidade porque quiséramos juntar aos desejos e perfeições do presente a amabilidade do que passou em síntese, e porque a época ou o momento do qual temos saudade já se nos apresenta não como um futuro próximo a manifestar-se e concretizar-se e ser fruído, mas como a concentração da amabilidade e bondade de várias alegrias e seus respectivos objetos num só instante, que costuma ser expresso por frases como “Naquela época da minha vida fazia tanto frio; víamos diariamente pelas ruas passar jovens casais de mãos dadas e sorrisos ingênuos no rosto”, pois então se tem de uma só vez toda a bondade de inúmeros seres num só instante presente, e isto de algum modo faz que pensemos na eternidade, porque uma aura de saudade percorre toda uma fase da existência, unifica toda aquela multiplicidade numa só declaração, de que era bom, de que passou e não mais voltará.

Podemos também pensar da seguinte forma. Olhando para o firmamento em noite de céu aberto e fora do alcance das ofuscantes luzes da vida urbana, é-nos possível contemplar uma ou duas estrelas de uma vez, focar o nosso olhar em suas unidades sem nisto incluir qualquer princípio de unificação, e ao mesmo tempo podemos observá-las numa visão de conjunto, como que vendo-as a todas sem ver uma em particular.

E este espetáculo é tanto mais admirável e estonteante quanto mais estão visíveis os astros e límpido o céu… Diante da unificação ou simplificação de todas esses antigos seres, vemos surgir uma bondade superior, a bondade da ordem deles, da sua redução e elevação ao que chamamos de céu estrelado, tanto mais perfeito quanto mais sintetiza em seu seio todas as estrelas e constelações; ou seja, trata-se de um bem consistente e denso.

Se antes, pela vista de pequenas belezas, poderíamos descrevê-las uma a uma e dar-lhes um nome próprio, agora pela elevação da multiplicidade a uma deslumbrante unidade superior parece que não temos tempo nem palavras para descrevê-la; o primeiro impacto, a admiração que antecede as lágrimas ou o tímido canto de louvor que espontaneamente nascem diante do resplendor do ser produz uma absorção do nosso ser inteiro naquele objeto, e ficamos nele fixados, como que sendo convidados a participar da sua unidade sublime ao unificarmos a atenção e palavras, que de fato se reduzem ao nosso espanto e silêncio.

Este então se apresenta como superior à linguagem discursiva, aos conceitos; o que sai de nós é uma palavra silenciosa, um verbo luminoso: a elevação tranquila e pacífica do nosso coração, que se rende à Verdade e Bondade que então são contempladas em pálidos reflexos. Como fruto deste amor admirável, a paz se sobrepõe à inquietação, sendo esta um princípio de dissolução claro do ser, ao passo que aquela reflete a unidade deste.

Ora, todo amor, quanto mais intenso é, mais absorve o ser; se este amor se apresenta como algo único – esta mulher, este filho que acaba de nascer, etc. –, não prestamos atenção mais, nos momentos de êxtase, ao transcorrer progressivo do tempo, às fragmentariedades das ações humanas, às vicissitudes do clima nem das nossas paixões: somos um só para um outro,¹ e então parece que vivemos um só instante de amor, um condensado em que todo o nosso coração é derramado e elevado.

Parece que uma gota dos céus da eternidade fecunda este presente em que o amado está conosco, e por isso algumas pessoas dizem de momentos irrepetíveis de suas vidas: “Era como se o tempo tivesse parado: foram cinco horas que não percebi passarem”. Esse detimento do tempo se dá pela elevação do coração, suspenso por sobre a multiplicidade do passageiro e do que ainda não foi assimilado na síntese superior operada pelo amor que o eleva.

Como anteviam com eloquência os gregos, operar estas maravilhas na alma humana é próprio da presença da Beleza, que atrai e cativa o coração; reconhecer sua obra é uma ode à Verdade, que ilumina a inteligência; e render-lhe homenagem pelo devotamento do próprio ser é glorificar a Bondade, que tudo fecunda e, assim, eleva à perfeição os seres.

Se pois a Beleza é tão fundamental, se ela aparece como algo determinante no amor que temos às demais criaturas, suprimi-la é criar condições a que a alma se fragmente, envelheça e morra de fome, sem ter onde haurir a consistência de que precisa para seguir vivendo em ordem a seu aperfeiçoamento.

No Inferno reina a fealdade por excelência, enquanto o Paraíso é caracterizado por sua infinita beleza. Na verdade, para falar com mais precisão, o Paraíso é Deus mesmo, que é a eterna e subsistente Beleza… Não há como enfastiar-se de contemplar o sumamente e infinitamente amável, absolutamente rico em uma unidade tal que absorve por completo o ser amante, que já nada pode desejar frente ao infinitamente desejável, então atualmente possuído pela visão beatífica.

A Beleza divina é sempre antiga e sempre nova: sendo a mesmíssima e identificando-se com o próprio Deus, é como se fosse tudo ou, por assim dizer, variada, no sentido de que sempre há razão para se manter intacta a primeva admiração em toda a sua plenitude, porque não se esgotam as maravilhas da perfeição divina jamais, ainda que ela permaneça sendo una e não diversificada nem fragmentada, como em se tratando das perfeições criadas.

Nesse sentido se pode dizer que Deus é infinitamente interessante, nunca pode causar tédio – este supõe imperfeições e debilidades e males, ainda em meio de diversidade de perfeições, o que quer dizer: uma causa proporcionada ao tédio –, é passível de ser fonte de suma fruição com a mesma intensidade e sem qualquer desgaste e sem monotonia.

Ora, o que supõe o desejo de novidades contraposto a esta senão a percepção de que os mesmos amores já não nos bastam nem nos satisfazem, precisamente porque são limitados? Sendo limitados e débeis, ou sendo os mesmos de sempre, podem cansar-nos, e por isso buscamos outras coisas, novas perfeições.

Mas esse movimento faz que busquemo-las em variedade, o que por sua vez indica que cada ser que nos apetece não o faz senão a título de bem temporário e limitado, razão por que buscamos quebrar sua monotonia particular com a experiência de um derramamento no diverso: se cada ser individualmente vem a causar-nos tédio, a atitude de buscar vários e diferentes amores vem de que a bondade de cada qual seja para nós limitada, mas potencialmente infinita, de certo modo, nossa capacidade de alternar de objetos e de nessa contínua fruição diversificada não deparar com tédios particulares, embora nisso haja o perigo funesto e próximo de encontrarmos um tédio muito mais perigoso e nocivo, que é o que subjaz a essa atitude de busca de novidades: o tédio do geral, da falta de sentido, da busca mesma por uma coisa após outra, desgastada continuamente porque tornada um fim às custas da insignificância do que se obtém elementarmente.

Pois, fragmentado o amor, fragmenta-se também o ser que ama, e então o tempo não se suspende nem se eleva a um patamar superior: torna-se um fardo pesado; não tem sabor de eternidade senão quando se considera esta sob a perspectiva da irreversível agonia dos condenados. E que atroz monotonia há no Inferno, inundado de amores diversos e desordenados!

Essa monotonia é enegrecida pela fealdade suprema que desfigura aquelas almas para sempre perdidas, que viam talvez tédio em servir a Deus, em praticar a virtude e até mesmo no próprio Paraíso! Supor neste qualquer sombra de enfado não é senão exteriorizar a mesquinhez do próprio coração e uma pequenez letárgica de espírito.

Aqui, vem novamente ao caso o firmamento como exemplo. Embora ele seja o mesmo sempre, em quantas ocasiões não nos vemos alegres ou espantados por contemplá-lo mais uma vez, como crianças ingênuas a quem tudo parece uma novidade, um motivo de espanto e admiração? É monótono o céu noturno? Mas desde que critério se chega a esta conclusão?

O que faz que para uns festas voluptuosas e ruidosas sejam extremamente entediantes e cansativas – monótonas! – na mesma medida em que encontram suas delícias em um ambiente a céu aberto, na escuridão da noite, em um local qualquer na natureza, enquanto para outros esta segunda situação é que não interessa em absoluto – o que é que o faz senão o amor?

Quando se ama intensamente e o amor é perfeito, nunca se vê no amado uma causa de enfado ou tédio, e se estamos em disposição de amar perfeitamente e sem as debilidades próprias da nossa condição corporal aquele que é sumamente amável e sem sombra de imperfeição, que tédio nisso haveria?

O amor desordenado às diversões não é suficientemente intenso porque não é uno nem selado com a nobreza da Verdade; é um amor vago e disperso, ainda quando concentrado de todo nos prazeres; é-o por seus efeitos, pois dissolve a personalidade; sendo pois um amor imperfeito e intrinsecamente sujeito às debilidades da carne, é por si, da parte do sujeito, capaz de diminuir progressivamente e perder forças, além de cansar da real monotonia dos prazeres vãos a que se entrega, em si mesmos imperfeitos e por isso incapazes de satisfazer por completo a alma, fontes contínuas de frustração e cansaço.

Enquanto o verdadeiro amor avigora e transcende e ao mesmo tempo transfigura o tempo, o falso debilita o espírito e, prendendo-se ao tempo, que é seu algoz, pois o consome e lhe diminui as forças próprias e as perfeições do objeto vão que ama, torna-o insuportável.

Como resultado desta vida dissoluta, nada se tem no coração que o mantenha quieto e firme: diante do silêncio, foge-se, como quem diz que, porque ama desordenadamente, não consegue viver senão fugindo do ambiente interior insuportável criado por esse amor, utilizando-o porém como via de escape de seus próprios frutos amargos! Buscam-se numerosos e indefinidos prazeres não porque estes suprimam o tédio, mas porque, causando-o na alma, tornam-na de tal modo cativa que ela já não vê que se esgota em apetecê-los quando se esvaem e escorrem por entre as mãos que os buscam ansiosamente.

Para concluir e fazer jus à intenção de fazer deste texto uma continuação do breve artigo O Paraíso é tedioso?, recordemos a memorável definição que deu Boécio da eternidade: a posse total, perfeita e simultânea de uma vida interminável (interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio). Não há, na eternidade, como que um passado no qual vemos, com nostalgia e saudade e triste, bens amados que não mais existem, nem um futuro no qual o amado ainda não está presente e cuja vinda, próxima ou remota, nos inquieta o coração.

Nela há o máximo de consistência, razão por que se trata de um indefectível e absolutamente tranquilo presente. Nossa perfeita satisfação não dará lugar a um instante no qual nos veremos novamente insatisfeitos, pela satisfação primeva ter passado e se nos escapado: eternamente suspensos por amor àquele que é infinitamente amável e belo, estaremos sempre gozando de sua presença e, ao mesmo tempo, satisfeitos, sem mais nada por desejar, porque tudo teremos quando o possuirmos, pois este que é nosso tudo é o próprio Deus. Ele não como as criaturas, cuja beleza, por maior que seja, é limitada e cansa-nos, de forma a buscarmos outra unidade de beleza na diversidade de outros elementos, cada qual com seu selo indelével e uno de, sendo o que é, fazer resplender sua existência gloriosamente.

Num eterno presente, Deus será tudo em todos, de forma que seu ser para nós tudo suprime-nos toda falta ou carência, e onde não há carência não pode haver tédio.

¹ Cf. Pessoalidade, amor e felicidade | Lux Aeterna (art.blog)

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