Na antiga concepção siríaca, não há nenhuma contradição entre a justiça de Deus e a Sua misericórdia. Pelo contrário, ambos são aspectos da bondade de Deus, e do Seu plano divino para a salvação. Tomar um sem o outro é separar dimensões da unidade de Deus: devemos fazê-lo porque só temos mentes humanas, mas devemos também lembrar que, em Deus, essas qualidades são uma.
Santo Efrém (c.306-373), um contemporâneo mais velho de São Maroun, dedicou o quinto dos seus Hinos sobre a Igreja na exploração do mistério da relação entre a misericórdia de Deus e a Sua justiça. Aliás, embora também usassem a prosa, o uso de hinos para desenvolver o que chamaríamos de ideias teológicas é uma das marcas do antigo pensamento siríaco. Foi, entre outras coisas, uma forma de ensinar ao povo as verdades da sua religião de uma forma memorável. Neste hino, Efrém escreveu: “… embora o mar da bondade esteja cheio de misericórdia, nenhuma gota de misericórdia cairá, no Dia do Juízo, sobre aqueles que não se arrependem”.
Ou seja, a misericórdia de Deus é infinita, mas, em sua plenitude, ela não será e não poderá ser conhecida até o Dia do Juízo, quando será derramada sobre aqueles que se arrependem, e somente sobre eles.
Disto decorre várias considerações. Em primeiro lugar, e mais obviamente, o objetivo da bondade de Deus ao lidar conosco é levar as nossas almas a um ponto em que sejam conformadas com a Sua Bondade, Beleza e Verdade. Deus deseja que sejamos refeitos à Sua imagem e semelhança, que foram desfiguradas pelo pecado.
Assim, para entender a misericórdia e a justiça, a ideia de tribunal é insuficiente: não se trata somente de decidir o que uma pessoa merece; o plano divino de salvação envolve a remodelação da alma para que a pessoa se torne relativamente digna de habitar na Presença de Deus. Este fato por si só mostra a necessidade da misericórdia para aperfeiçoar a obra da justiça: pois, embora a justiça dê a cada um o que merece, nenhum de nós pode dizer que merece desfrutar da visão beatífica pela eternidade. Mas Deus, em Sua misericórdia, nos concede isso, quando nos arrependemos e então somos capazes de receber Sua misericórdia.
Para expressar isso de qualquer maneira que possamos entender, é necessário falar em termos de desenvolvimento cronológico: somos educados pela justiça e pela punição digna, e então, quando isso tiver feito o seu trabalho, somos redimidos em Sua misericórdia. E Efrém fala dessa maneira. Mas é apenas uma maneira de falar. Na realidade, Deus está sempre tratando conosco de acordo com Sua justiça e misericórdia. Conforme foi dito, nós vemos a justiça e a misericórdia como diferentes só porque temos perspectivas limitadas e, por isso, diversas sobre Sua Bondade. Se em algumas ocasiões víssemos a frente de algo grande, e em outras víssemos apenas as costas, poderíamos não perceber que eles fazem parte de um todo grande demais para que possamos ver. Da mesma forma, sugere a tradição siríaca, é e deve ser quando ponderamos sobre Deus.
Efrém também expõe que há misericórdia até mesmo na justiça de Deus, porque Ele poderia simplesmente ter nos deixado em paz, mas em vez disso, em Sua misericórdia, nos revelou Sua justiça e Seu castigo condigno. Por isso, na Divina Liturgia Maronita, nos referimos a como Deus, como um bom pai, veio procurar por nós. Ora, se é um ato de misericórdia disciplinar alguém que necessita de disciplina, então a misericórdia de Deus também é aperfeiçoada em Sua justiça.
Nós nunca devemos presumir a misericórdia de Deus, afirma Efrém, ou pensar que podemos dispensar a busca pela santidade e a renúncia ao pecado. Mas uma alma contrita cultiva as virtudes necessárias para ser capaz de suportar o que Efrém chama de Sua “forte misericórdia”, pois a pureza não pode existir onde há impureza. Aliás, embora eu não tenha motivos para acreditar que ele conhecesse a obra de Efrém, C.S Lewis chegou a uma perspecitva muito similar.
Em suma, a justiça de Deus torna-se perfeita na Sua misericórdia, e a Sua misericórdia torna-se perfeita na Sua justiça, porque ambos são aspectos da Sua misteriosa bondade. Deus nos disciplina para que possamos conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo na medida em que somos capazes. Mas mesmo o melhor de nós é ainda humano, e ultrapassar a lacuna entre os nossos limites e o Seu infinito está além de nós. Nenhum de nós, nem mesmo os melhores e mais puros, pode subir ao céu sem auxílio. Sua misericórdia pode ser considerada como a mão amiga que nos eleva acima do degrau mais alto da escada para a Presença Divina e seu êxtase perfeito.
Fonte: Maronite Meditations