Recomendo aos colegas terapeutas um anime de 12 episódios da temporada anterior: Jaku-Chara Tomozaki-kun, cuja tradução seria mais ou menos Tomozaki, um personagem de nível inferior. Confesso que quando li a sinopse, não esperava muita coisa da animação, mas logo fui surpreendido pelas analogias e o desenvolvimento da história e dos personagens. É óbvio que nesta análise usarei de spoilers. Segue a sinopse:
Tomozaki é um dos melhores jogadores do Japão e, em sua opinião, o jogo da vida real é um dos piores. Sem regras claras para o sucesso, terrivelmente desequilibrado e nada faz sentido. Mas então ele conhece uma jogadora que é tão boa quanto ele, e ela se oferece para ensiná-lo algumas façanhas…
O anime gira em torno do personagem principal chamado Tomozaki (como já sugeria o título). Ele é basicamente o melhor jogador do Japão de um game chamado Attack Form, um jogo de luta muito popular (claramente inspirado em Super Smash Bros). Porém, ao mesmo tempo que ele é “famoso” em sua conta nanashi, liderando o ranking online do game, na vida real é uma pessoa introspectiva, tímida, impopular e complexada.
Pois bem, a primeira cena do anime é com Tomozaki, no colégio, jogando Attack Form contra Nakamura, um rapaz popular e bastante competitivo do colégio, personalidade de tipo irascível. Como era de se esperar, Nakamura vai levando uma surra após a outra, e não obstante, para não reconhecer sua derrota, colocou primeiro a culpa no personagem (então Tomozaki trocou o personagem e continuou ganhando) e depois colocou a culpa no próprio game, o que fez com que recebesse uma repreenda de nosso personagem principal:
– “Nunca é justo colocar a culpa no jogo”, e acrescentou que ele deveria treinar mais se quisesse ter chance de vencê-lo. Nakamura simplesmente sai irritado e a cena termina.
Se Tomozaki, através de sua conta nanashi, era o primeiro do ranking de Attack Form; o segundo player no ranking era uma conta chamada no name. Após voltar do colégio e começar a jogar online, eis que os dois melhores se enfrentam. Nanashi reconhece uma melhora de no gameplay de no name, mas o resultado da luta foi o de sempre: vitória de Nanashi. Contudo, diferentemente das outras partidas, no name envia uma mensagem dizendo que queria conhecer o nanashi pessoalmente. Assim eles combinam de se encontrar.
E qual não foi a surpresa recíproca ao se encontrarem no local combinado? Ambos se conheciam pessoalmente, inclusive estudavam na mesma sala. No name, na verdade, era sua colega Hinami, uma das garotas mais populares do colégio, pois, além de ser bonita, também era a melhor nos esportes que praticava.
Hinami ficou decepcionada ao saber que o temível nanashi era Tomozaki, o garoto mais “fracassado” de sua escola. Como poderia ser – ela o questiona – que uma personalidade tão forte e impositiva no game fosse, na vida real, um rapaz que não interage com ninguém? Além disso, ela reclama do fato de ele estar todo desleixado para o encontro e de não estar nem aí para a vida. Tomozaki, por sua vez, sentiu o golpe da crítica (sinal de que reconheceu intuitivamente a verdade contida nela) e defendeu-se dizendo que a “vida é um lixo”.
Então Hinami o pressionou ainda mais, questionando se ele já havia jogado o game da vida, afinal “nunca é justo colocar a culpa no jogo”. Se ele não tinha habilidades sociais, a culpa não era da vida, mas dele que não sabia agir direito. Diante dessa paulada, Tomozaki simplesmente ficou sem resposta. Ele havia sido pego em sua própria filosofia e estava diante de uma incoerência existencial.
Aqui já se vê uma característica interessante de Tomozaki, e permeará todo o anime: Tomozaki tem apreço pela sinceridade e, durante seu desenvolvimento, tem certa humildade de fundo que será fundamental para ir superando seus dramas. Apesar de sua rebeldia contra a vida real, com essa certa humildade, e diante de um confrontamento franco, reconheceu que estava errado e que deveria dar uma chance à vida.
Diante do reconhecimento de sua derrota argumentativa, Hinami propõe ajudá-lo. Ela alega que já tinha sido como ele, mas que com treino e esforço conseguiu tornar-se sociável. E é aqui que começa a dinâmica do anime, com Hinami sendo a coaching em tornar Tomozaki mais sociável e passasse a gostar do jogo da vida.
Diante deste plot logo no primeiro episódio, percebi que, ao contrário da minha impressão original, o anime seria muito interessante. Pude vislumbrar questões psicológicas e filosóficas sendo envolvidas na trama, e não de maneira maçante. E assim foi o desenvolvimento do anime.
Se em Jaku-Chara Tomozaki-kun a vida é comparada a um jogo, o Padre Leonel Franca em A Crise do Mundo Moderno, ao falar sobre a personalidade, compara-a com um teatro, o que mostra que ao invés de nos revoltarmos com a vida, devemos nos preocupar em cumprir nossos papéis através do desenvolvimento de nossa personalidade, rumo à perfeição possível. E será esse, mais para o final, o ápice do anime. Mas continuemos.
A partir de então, o anime vai nos mostrando o desenvolvimento de Tomozaki através dos ensinamentos e das missões que Hinami vai passando. As coisas são básicas, mas realmente podem vir ao auxílio de um introspectivo muito complexado. Entre elas, podemos citar:
– A importância de se vestir bem (alguma noção de moda), a questão da postura (como é típico de quem tem baixa autoconfiança, anda-se mais corcunda do que ereto, então a mudança de postura pode, do exterior para o interior, auxiliar na questão da autoconfiança), aprender a sorrir (pois a expressão de Tomozaki era de tristeza e timidez crônica), tom de voz (porque Tomozaki falava sempre para dentro, como que pedindo desculpa por ter que falar, quando na verdade ele deveria aprender a se colocar nas conversas).
Outro ponto bastante trabalhado foi a interação com outras pessoas. Hinami passou desafios que envolvia superar seu medo e começar a iniciar conversas com garotas, também treinou interação em grupo (com passeios entre amigos). Inclusive Hinami teve o cuidado de a primeira garota com que Tomozaki iria interagir fosse uma pessoa bastante expansiva (temperamento sanguíneo), facilitando para ele a interação. Outro desafio interessante foi fazê-lo dar elogios e também em zoar um certo colega.
Durante o anime, embora nunca sem perder certa timidez (mostrando que se trata de fato de um processo que é relativamente demorado), Tomozaki vai fazendo amizades e, em certos eventos, ele até vai demonstrando solicitude para ajudar aos outros. O que é um aspecto muito importante para o desenvolvimento pessoal, àquilo que Viktor Frankl chamava de autotranscedência, a capacidade de sair de si para ajudar os outros.
Conforme Tomozaki ia “subindo de nível” no “jogo da vida”, ele realmente ia descobrindo uma realidade que para ele antes era desconhecida. Sua rebeldia e revolta vai mudando, e cada vez mais vai percebendo que a vida é um jogo que vale a pena ser “jogado”. Mas eis que mais para o final do anime adentraremos na grande questão filosófica do anime, naquilo que iniciará uma briga entre Tomozaki e Hinami.
Acontece que, durante o curso do anime, Tomozaki interagi com Kikichu, uma garota também mais reservada que passava muito tempo na biblioteca do colégio. Tomozaki também ia frequentemente na biblioteca, mas fingindo ler um livro, por cima dele desenhava estratégias para o Attack Form. Por isso se conheciam de vista. Por conta desse cenário, Hinami passa a missão envolvendo interação com Kikichu: ele deveria convidá-la para sair.
O início da interação foi uma farsa. Tomozaki fingiu que gostava de um autor que Kikichu admirava. Então ela citou que havia um filme no cinema baseada na obra deste autor, o que foi a chave para Tomozaki convidá-la para irem juntos.
Nesta trama, podemos ver novamente um bom apreço de Tomozaki pela sinceridade. Ele se sente culpado por mentir um interesse em um autor que para ele era desconhecido. Para remediar a situação, ele começa a ler de verdade a obra do autor e acaba gostando. Porém, antes do dito encontro, ele admite que havia mentido, mas que, após conhecer o autor melhor, continuava querendo ir com ela. Ela desculpou-o e o convite continuou de pé.
Neste primeiro encontro entre os dois, Tomozaki tinha treinado com Hinami gatilhos de conversas, para que o encontro não ficasse sem papo. Ao fim do encontro, quando ambos já estavam no metrô a caminho de voltar para suas respectivas casas, Tomozaki achou que tinha ido bem , mas Kukushi admite que, embora tenha gostado do encontro, tinha havido certos momentos em que era difícil conversar com ele.
Isso inquietou Tomozaki, que rapidamente identificou a artificialidade dos assuntos pela técnica da Hinami como a causa. Basicamente Tomozaki percebeu que ele tinha sido um personagem, e não ele mesmo. E este reconhecimento, adianto, é o ponto central do amadurecimento do anime.
Ao revelar como tinha sido o encontro para Hinami, ela então passa uma nova missão a Tomozaki. Ele deveria convidá-la de novo para sair, e no final, deveria se declarar para ela.
Kukushi topou sair novamente, mas dessa vez Tomozaki preferiu não usar da técnica de gatilhos de conversa da Hinami, buscando ser espontâneo na conversa. E algo interessante aconteceu: houve muito mais pausas entre as conversas, mas Kukushi confessa que foi muito mais fácil e agradável estar com ele dessa vez. E então, logo em seguida, ela desembarcou em sua linha para retornar para casa.
Hinami então pergunta para Tomozaki como havia sido. Então Tomozaki respondeu que não se declarou para Kukushi. Hinami perguntou se era porque havia faltado coragem, ao que Tomozaki responde: “Por que eu não quis”. Ele não achou certo mentir sobre os seus sentimentos.
A partir desse segundo encontro, Tomozaki entra em uma tensão interior muito intensa. Ele percebeu o perigo de viver um personagem e perder sua essência, mas, ao mesmo tempo, não queria voltar a ser um fracasso e reconhecia que ele tinha melhorado e que estava mais feliz com seu desenvolvimento pessoal. Sabia também que havia muita coisa em que ele deveria melhorar.
Enquanto lidava internamente com esta tensão, Tomozaki ainda se veria em uma nova trama envolvendo seus amigos de colégio (nessa parte do anime ele está mais enturmado). É interessante observar que ao mesmo tempo em que ele se questionava sobre sua autenticidade, colocando em dúvida se o treinamento com a Hinami tinha sido uma coisa boa, também percebe que Hinami, embora tivesse fosse bastante respeitava e possuísse muita desenvoltura, sendo bastante popular, não era uma pessoa autêntica, que na verdade omitia seus desejos íntimos para buscar sempre “a melhor resposta” para a situação. E isso ficou nítido quando ele ouviu um amigo da turma se declarando para Hinami, mas ela, ao invés de responder declarando seus sentimentos reais, deu uma resposta amigável, mas fria, rejeitando o rapaz.
Sobre o rapaz rejeitado, vale uma pequena nota. Trata-se de Mizusawa, um jovem bastante desejado pelas mulheres e uma espécie de líder-nato. Ele ajudou bastante Tomozaki em seu processo de melhoramento social. Talvez por serem de certa forma opostos, Tomozaki não escondia que admirava Mizusawa, mas a questão mais interessante é que, após a rejeição, e abrindo o coração com Tomozaki, Mizusawa admitiu que tinha inveja de Tomozaki, e que ele havia sido o modelo para ele tomar coragem e se declarar a Hinami. Por quê? Porque se era verdade que ele era considerado um líder e que era bastante popular, por outro lado, ao contrário de Tomozaki, ele não era sincero consigo mesmo. Que, na verdade, ele também vivia uma certa dor interior de ter que viver um personagem. Porém, ao conhecer Tomozaki e a sua sinceridade, ele percebeu que poderia ser mais honesto com seus sentimentos, e por isso decidiu se declarar a Hinami. Ele também confessa que percebe que Hinami sofre de um problema parecido com o dele, e que achou que ao ser sincero com ela, Hinami poderia mostrar um pouco do seu verdadeiro eu.
Depois desta conversa, Tomozaki finalmente acha a solução de seu problema. De fato: ele pôde se tornar uma pessoa melhor através das técnicas e missões de Hinami, porém, para não se tornar um mero personagem, deveria ser sincero consigo mesmo. Ele poderia, ao mesmo tempo, melhorar e ser ele mesmo.
O que Tomozaki descobriu é a distinção que há entre pessoa e personalidade. A pessoa tem em si uma identidade e certos talentos próprios. A personalidade, por sua vez, é o desenvolvimento moral da pessoa, que visa aperfeiçoá-la nas virtudes e, consequentemente, auxiliando a pessoa a se tornar quem ela é.
Estamos então na trama final do anime. Um novo confronto entre Tomokazi e Hinami. Ele cobra dela certa sinceridade, mas eis que então descobrimos a visão de mundo de Hinami: ela não acredita nessa coisa de “eu verdadeiro”; a melhor resposta, a melhor ação, é a pragmática, a que dará maior retorno social. Tomozaki, por ter encarado seu drama interior, discorda veementemente, e defende que existe um “eu” verdadeiro e deve ser respeitado. Diante de duas visões opostas de como se comportar no mundo, Hinami simplesmente decide encerrar o treinamento.
Aqui está o ponto mais profundo do anime. Tomozaki seria uma espécie de essencialista, que reconhece que cada pessoa tem uma substância própria (pessoalidade) e, ao mesmo tempo, certo espaço para o desenvolvimento pessoal (personalidade). Já Hinami seria uma existencialista, que considerada, como acreditava Sartre, que a existência precede a essência, ou seja, não existe uma essência como ponto de partida, não existe essa coisa de “eu verdadeiro” e de substância pessoal: é você, com sua liberdade, que vai moldando a sua “essência”.
Depois de refletir mais um pouco e ter ainda mais certeza de sua conclusão anterior, Tomozaki pede para conversar mais uma vez com Hinami. Ele faz um desafio para ela, a fim de tornar o “jogo da vida” mais interessante para ela. Ele desafia-a a provar que a visão dela sobre a vida está errada. E como? Que ela continuasse ajudando-o a se desenvolver através de suas missões, porque reconhecia que poderia continuar a progredir com ela, porém agora com uma diferença: ele levaria em consideração os seus desejos sinceros como ferramenta de crítica para decidir se aceitaria ou não determinado desafio. Hinami topou o desafio.
E assim terminou a primeira temporada deste anime. Sendo possível, através dele, meditar sobre a importância da humildade, da sociabilidade, da sinceridade, do perigo da artificialidade e das expectativas sociais, e, além disso, sobre a inveja.
Vale a pena comentar uma trama que ocorre na metade do anime, a qual foi centrada entre a rivalidade de Hinami e Mimi. Ambas são amigas, mas Hinami sempre venceu Mimi quando competiam. Então Mimi, cansada de sempre perder, começa a exagerar no treino, o que chega ao extremo de passar mal. É então que Mimi revela seu drama interior: ela tinha muito respeito e gostava muito de ser amiga de Hinami, porém, tinha inveja dela. E esses sentimentos ambíguos corroíam-na.
De fato, a inveja corrói. E como a Mimi resolveu isso? Ela conseguiu, após uma conversa com Tomozaki, perceber que poderia superar a inveja ao sublimá-la (não no sentido freudiano) em admiração (que é o que Tomozaki fazia em relação ao Muzusawa e às pessoas que tinham uma habilidade melhor que a dele). Ao invés de ficar ressentida por sempre perder de Hinami, ela passou a admirá-la por ser um modelo a ser buscado.
Por tudo isso que foi comentado, e mais alguns detalhes que preferi não comentar para não spoilar completamente o anime, acredito que Jaku-Chara Tomozaki-kun pode ser uma ferramenta terapêutica bem interessante para se trabalhar com pessoas introspectivas.
É um anime em que cabe uma segunda temporada, principalmente porque deixa em aberto qual é o drama que está no passado de Hinami. O que teria feito com que ela reprimisse seu “eu verdadeiro” para viver conforme técnicas sociais que desenvolveu? Qual são os sofrimentos que ela esconde por trás da máscara de “pessoa legal”? Sim, porque se, por um lado, o sofrimento de Tomozaki diminuiu conforme ele foi se tornando mais verdadeiro consigo mesmo, por outro, vivendo de mentira e por cálculos de admiração social, não há dúvida que o sofrimento de Hinami, no fim, é muito mais profundo e complexo do que inicialmente era o de Tomozaki.