Ler a Declaração sobre a Dignidade Humana (“Dignidade Infinita”), publicada ontem pelo Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), me lembra uma antiga história de professor-aluno. Um aluno entrega uma redação assinada e o professor a devolve com o comentário: “O que você escreveu aqui tem coisas boas e coisas novas. Infelizmente, o que há de bom não é novo, e o que há de novo não é bom”. Mas interrompamos a história aqui e, seguindo a regra cristã da caridade em todas as coisas, digamos da Declaração que o que há de novo nela está ainda a ser determinado.
Ora, aproximadamente na primeira metade dos seus sessenta e seis parágrafos, o documento busca situar-se em linha com os papas recentes e com o ensinamento católico clássico. Cita Paulo VI, João Paulo II, Bento, Francisco (cerca de metade das citações, é claro). E em nota de rodapé remonta a Leão XIII, Pios XI e XII, e aos documentos do Vaticano II Dignitatis humanae e Gaudium et spes. Na conferência de imprensa para apresentar a Declaração, o Cardeal Víctor Manuel Fernández, chefe do DDF, fez questão de começar com a observação de que o próprio título do texto veio de um discurso de São João Paulo proferido em 1980 a um grupo de deficientes em Osnabrück, Alemanha. De fato, disse o Cardeal, não é por acaso que o documento está oficialmente datado de 2 de abril, 19º aniversário da morte de JPII.
Tudo isso não pode deixar de fazer com que o leitor atento pense que os redatores – e aqueles que aprovaram o texto final – queriam fornecer amplas evidências de defesa contra quaisquer objeções que pudessem surgir.
E inevitavelmente, as objeções surgirão. Porque em vários aspectos esta apoteose da dignidade humana levanta mais problemas do que soluções. (A dignidade humana “infinita” nas mãos do JPII significava uma coisa; agora, pode significar outra muito diferente).
Entretanto, é bom ter um documento que afirme duas noções bíblicas fundamentais: “Então Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou”. Por isso, dignidade “infinita”. E ainda o Cardeal Fernández enfatizou durante a apresentação: “homem e mulher os criou”.
Mas grande parte do mundo já acredita na dignidade e liberdade humanas para muito além desses limites e responsabilidades. E a conclusão que vem de toda essa conversa – o que foi comunicado como oposto ao que realmente é dito – pode ser bem diferente das palavras presentes.
Por um lado, afirma-se repetidamente que existe uma dignidade ontológica para cada ser humano, desde a concepção até à morte natural. (Ontológico, aqui, significa que está impresso em nosso próprio ser e natureza por Deus e, por isso, “não pode ser perdido”).
So far so good.
Mas há outros tipos de dignidade – moral, social, existencial, conforme a Declaração reconhece adequadamente. Estas podem existir em maior ou menor grau, propriamente ou impropriamente. Atos moralmente maus, por exemplo, não só afrontam a dignidade humana dos outros, mas também diminuem a nossa própria dignidade moral – e liberdade – embora jamais, dizem-nos repetidamente, ao ponto de perdermos a nossa dignidade ontológica.
A consequência disto é uma certa falta de realismo católico – falhando até mesmo no básico – em alguns dos argumentos da segunda metade do documento. Para ser justo, assuntos específicos foram mostrados em termos gerais e breves – algo que o Cardeal diz ter sido deliberado, a fim de manter o documento relativamente breve.
Não obstante, não deixa de ter estranhezas. Por alguma razão, por exemplo, a dignidade intrínseca é a razão pela qual a pena de morte já não é “admissível”. Mas a pena capital não só foi vista desde os primórdios da Igreja como “admissível” (sobre este assunto, ver a obra definitiva de Joseph Bessette e Edward Feser), mas também muitas vezes foi até valorizada como uma questão de justiça – e de dignidade humana – tanto para o perpetrador quanto para a vítima. Esta doutrina sempre considerou com seriedade os erros humanos e as formas como são punidos.
A Declaração também afirma o direito à autodefesa, mas prossegue: “Não podemos mais pensar na guerra como uma solução porque os seus riscos serão provavelmente sempre maiores do que os seus supostos benefícios. Em vista disso, é muito difícil hoje em dia invocar os critérios racionais elaborados em séculos anteriores para falar da possibilidade de uma ‘guerra justa’”.
No entanto, a Ucrânia está a travar uma guerra justa. E não será o último – até que a maldade humana deixe a terra.
O problema não está apenas nos argumentos. Há também a questão sobre o que a Igreja tem feito recentemente. Por exemplo, a Declaração fala eloquentemente da violência contra as mulheres. No entanto, quando duas mulheres finalmente decidiram vir a público para falar sobre o Pe. Marko Rupnik, amigo do papa e ex-jesuíta, alegando que cerca de duas dezenas de mulheres foram abusadas sexualmente por ele (incluindo alguns rituais que só podem denominados como satânicos), medidas apropriadas não foram tomadas. Pe. Rupnik ainda atua como sacerdote em Roma.
A Declaração também faz com certa contundência uma oposição à teoria de gênero:
sua tentativa de negar a maior das diferenças possíveis entre os seres viventes: a diferença sexual. Tal diferença fundante é não só a maior, mas a mais bela e a mais potente: na dualidade homem-mulher, ela alcança a mais admirável reciprocidade e é assim a fonte daquele milagre, que não deixa de surpreender-nos, qual é a chegada de novos seres humanos ao mundo.
No entanto, esta afirmação em teoria entra em conflito com a forma como a Igreja tem agido recentemente na prática. Na sua apresentação oral, por exemplo, o Cardeal destacou não só os ensinamentos de Francisco, mas também as suas atitudes e comportamento para com todas as pessoas, uma questão de acolhimento e respeito. Isso tem sido uma característica constante – e muitas vezes confusa – do seu papado.
Por um lado, temos a compreensão correta da teoria do gênero. Por outro, o papa se encontra com o Pe. James Martin e com os líderes do New Ways Ministries, claramente defensores de pontos favoráveis à teoria do gênero, e (incrivelmente) foram descritos como praticantes do “estilo de Deus”.
Francisco não tem nenhuma dificuldade em castigar padres em geral, até mesmo em psicanalisar, à distância, aqueles que considera “rígidos”. Mas onde está a vontade, quando isso é difícil, de evangelizar, de confrontar, de exortar ao arrependimento? Precisamente nas questões difíceis. É fácil denunciar a guerra, o tráfico de seres humanos, os danos ambientais, a violência contra as mulheres, a barriga de aluguel, etc. Muito mais difícil é comprar a briga nos pontos em que a Igreja é mais necessária.
Afirmar a dignidade humana não impedirá os ataques dos guerreiros do arco-íris, não impedirá o Dia da Visibilidade Trans na Páscoa, não impedirá os dois meses do orgulho gay ou as histórias de Drag Queen para crianças. A única coisa que tem chance de fazer recuar estas ameaças destrutivas à dignidade humana é uma Igreja com postura muito mais militante.
E apesar de algumas palavras encorajadoras, há pouca luta real na Declaração, principalmente se levarmos em conta o momento atual, onde ativistas militantes de vários matizes precisam não somente ser observados e classificados, mas também efetivamente combatidos. Eles precisam ser rechaçados, para o próprio bem da dignidade humana.
Sim, significa explicar por que razão todas estas coisas são danosas à dignidade humana, o que o documento faz bastante bem. Porém, enquanto a explicação continua – contradita pelo “acolhimento” indiscriminado –, crianças estão sendo mutiladas, famílias estão sendo dilaceradas, o casamento está marginalizado, as populações estão diminuindo. E qualquer um pode facilmente imaginar a conclusão a ser tirada por aqueles com vontade de interpretar errado. Mas não totalmente errado. Tal como aconteceu com o fiasco “Quem sou eu para julgar?”, a mensagem transmitida a muitos na nossa cultura, apesar das palavras reais, provavelmente será dizer: “O Papa Francisco disse que tenho dignidade -infinita – intrínseca. Não enche o saco, cara”.
Fonte: The Catholic Thing