Depois de Fiducia suplica, temos outra reviravolta no ensinamento constante da Igreja que considera o direito à vida inviolável, mas somente para os inocentes. É que uma mudança leva a outra.
«Uma dignidade infinita, inalienavelmente fundada no seu próprio ser, é inerente a cada pessoa humana, para além de toda circunstância e em qualquer estado ou situação se encontre» (n. 1). Este é o início da nova Declaração do Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF), Dignitas Infinita. Um substantivo e um adjetivo que, combinados, só podem referir-se às três Pessoas divinas, mas que, em vez disso, incautamente passam a caracterizar a pessoa humana na Declaração.
Criatura e finitude se nos referirmos ontologicamente: uma dignidade sublime, feita para o Infinito, como a humana, é ainda uma dignidade criada, que teve um começo e que se expressa numa essência, que sempre indica delimitação. Em vez disso, a Declaração diz-nos, sem gastar muita tinta em argumentação, que a infinita dignidade do homem é inclusive “plenamente reconhecível também pela pura razão” e confirmada pela Igreja. Onde, como e quando não é dado a saber: a marca inconfundível de toda “criação Tuchiana”.
Uma afirmação, portanto, gratuita e errada, admissível somente se o significado do adjetivo pretende ser hiperbólico. Mas aquilo que resulta ser a base de um grave erro presente na Declaração, no n. 34; parágrafo que introduz as «numerosas e graves violações da dignidade humana no mundo contemporâneo», desenvolve em seguida: «É necessário mencionar aqui o tema da pena de morte, que também viola a dignidade inalienável de toda pessoa humana para além de toda circunstância”. A nota 55 reporta a nova versão do n. 2.267 do Catecismo da Igreja Católica (CIC) e a Carta de 1º de agosto de 2018 que, na ocasião, foi enviada pela Congregação para a Doutrina da Fé.
O parágrafo motiva a relação entre o fortalecimento da proteção da dignidade humana, objeto da Dignitas Infinita, e a condenação da pena de morte, lembrando o n. 268 da encíclica Fratelli tutti: «a decidida rejeição da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a inalienável dignidade de cada ser humano e admitir que tenha um lugar neste mundo, já que se não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém, darei a todos a possibilidade de partilhar comigo este planeta, malgrado o que nos possa separar”.
O raciocínio é mais ou menos este: a pena de morte ofende a dignidade da pessoa humana; portanto, negar que possa ser prejudicada a dignidade humana de um criminoso mediante a pena capital terá como consequência que a dignidade dos não-criminosos será ainda mais segura. Porém, basta uma rápida olhada na situação geral para compreender que, infelizmente, as coisas não são assim: a França republicana, rigorosamente death pealty-free, incluiu o aborto como um direito constitucional; ou seja, “abençoou” constitucionalmente o extermínio de centenas de milhares de inocentes no ventre de suas mães, pelas mãos de médicos regularmente registrados para trabalharem nas estruturas públicas, enquanto, por outro lado, não quer que um fio de cabelo de um serial killer seja tocado, principalmente se for “diversamente francese”. Do outro lado do oceano, os Estados Unidos, onde a pena de morte está em vigor na maioria dos Estados (em alguns dos quais já não é mais aplicada há algum tempo ou foi tornada inoperante por uma moratória), pelo contrário, foi registrada uma decisão declarando o aborto inconstitucional. Parece que aqueles que mais se preocupam em defender os assassinos de uma pena justa e merecida, mais permitem que os inocentes sejam castigados impunemente; inclusive com o selo de aprovação do Estado.
Portanto, o raciocínio do Papa Francisco, retomado pelo Dicastério para Doutrina da Fé é simplesmente contradito pela realidade.
Mas há um outro problema, ainda mais grave: a afirmação de que a pena de morte “viola a dignidade inalienável de toda pessoa humana para além de toda circunstância” é errada e contradiz o ensinamento constante da Igreja a este respeito.
Vamos em ordem. O artigo 2.267 do Catecismo da Igreja Católica foi modificado em 2018, com a inserção de uma declaração muito problemática: «a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que “a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa”, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo». A afirmação soou aos ouvidos mais atentos como uma clara contradição ao ensinamento da Igreja, que deixava liberdade quanto à conveniência da pena capital, mas defendia a verdade de que o poder secular legítimo poderia executar um criminoso, desde que respeitados os outros princípios da justiça.
A Congregração para Doutrina da Fé, na época ainda liderada pelo Cardeal Ladaria, tentou salvar a situação, defendendo tanto a mudança do Catecismo desejada pelo Papa Francisco quanto o ensinamento constante da Igreja, ao dizer que foi “um autêntico desenvolvimento da doutrina”. Mission impossible.
Agora, a Declaração já nem sequer se refere à questão da conveniência, senão que sentencia que a pena de morte é, em qualquer caso, contrária à dignidade da pessoa. Ponto. Se assim fosse, teríamos que concluir, com o rigor da lógica, que quem aplica a pena de morte comete sempre um pecado contra o quinto mandamento, porque entre inocentes e culpados já não haveria distinção. E, analogamente, quem aplica a pena de morte comete sempre um ato de injustiça, porque priva uma pessoa de algo que lhe pertence de modo inalienável, nomeadamente o direito à vida, em virtude da sua suposta dignidade infinita.
Ora, apenas para fazer uma só citação entre muitas, o Papa Inocêncio III na epístola Eius exemplo ao arcebispo de Tarragona, Durando de Osca, exigiu que os valdenses que se converteram à fé católica professassem, numa fórmula de fé, exatamente o oposto do que foi ensinado pelo Papa Francisco e pelo Cardeal Fernández: «No que diz respeito ao poder secular, declaramos que ele pode exercer o julgamento de sangue sem pecado mortal, desde que, ao executar a vingança, proceda não por ódio, mas por ato de justiça, não de modo incauto, mas com reflexão» (Denz. 795).
É possível notar que Inocêncio III acredita que são algumas circunstâncias que tornam ilegítimo o julgamento de sangue, e não o próprio fato de impor a pena capital. Ora, como é possível que o poder secular tenha a faculdade de impor a pena capital sem pecado, como afirma a Eius exemplo, se esta pena viola sempre a dignidade da pessoa humana, “para além de qualquer circunstância”, como afirma, de modo contrário, Dignitas infinita? Como pode a pena capital proceder de um “ato de justiça” (precisamente, um ato retributivo de justiça), se se trata de um ato radical de injustiça contra a dignidade humana?
É impossível conciliar estas duas posições. O ensino católico nunca considerou de forma absolutista o direito à vida, como fizeram os valdenses, os quacres, os menonitas, os hussitas e os pacifistas, embora tenha sempre defendido a inviolabilidade da vida inocente. O que é outra coisa. Encontramo-nos assim, mais uma vez, na situação embaraçosa de Fiducia supplicans: a contradição com o ensinamento da Igreja apresentada como autêntico desenvolvimento. E diz-se que não há dois sem três.
Fonte: La Nuova Bussola Quotidiana