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Ladaria em defesa da Humanae Vitae

Parte 1 – Sexualidade, Amor, Vida, Natureza e Liberdade

Parte 2 – Contracepção, Ideologia de Gênero e Transumanismo

Humanae Vitae: audaz, profética e cada vez mais atual

Das relações sexuais que excluem os filhos, aos aos filhos “produtos” que excluem o sexo, até um futuro que a força da manipulação prescindirá não só da dualidade homem-mulher, mas do próprio homem. Só uma antropologia integral nos salvará da deriva pós-humana: esta é a perene vigência da encíclica de Paulo VI, nas palavras do cardeal Ladaria Ferrer.

Publicamos a conferência Humanae Vitae como uma encíclica audaz e profética. Sua relevância nos dias de hoje do Cardeal Luis Francisco Ladaria Ferrer, quem falou no Congresso Meu corpo me pertence”. Humanae Vitae, a audácia de uma encíclica sobre sexualidade e procriação organizada pela Cátedra Internacional de Bioética Jérôme Lejeune (Roma, 19-20 de maio).

Fonte: Bussola Quotidiana / Tradução: Instituto Santo Atanásio

Saudações aos participantes

Quero saudar cordialmente o presidente da Fundação na Espanha, Dr. Mónica López Barahona, e agradecê-la pelo convite de participar deste congresso internacional dedicado à Humanae Vitae, organizado pela Cátedra Internacional de Bioética Jérôme Lejeune. Saúdo também todos os participantes, desejando-lhes uma feliz estadia em Roma.

Introdução

A encíclica Humanae Vitae abordou questões relativas à sexualidade, ao amor e à vida, que se interligam intimamente. São questões que envolvem todos os seres humanos de qualquer época. Por isso, sua mensagem permanece válida e atual ainda hoje. O Papa Bento XVI expressava isso com estas palavras: «O que era verdade ontem, continua a ser verdade ainda hoje. A verdade expressa na Humanae vitae não muda; pelo contrário, precisamente à luz das novas descobertas científicas, o seu ensinamento torna-se mais atual e provoca a reflexão sobre o valor intrínseco que possui» [1]. O próprio Papa Francisco nos convidou, em sua exortação pós-sinodal Amoris Laetitia, a redescobrir «a mensagem da encíclica Humanae Vitae», como uma doutrina que não só devemos conservar, senão que nos é proposta para ser vivida. Uma norma que transcende o âmbito do amor conjugal e que é referência para viver a verdade da linguagem do amor em toda relação interpessoal.

A audácia da Humanae Vitae

Insistem na audácia de Paulo VI porque resistiu às pressões que visavam aprovar o uso de anticoncepcionais hormonais nas relações sexuais dentro do matrimônio católico. Contudo, na minha humilde opinião, a verdadeira audácia da encíclica é muito mais profunda. É de caráter antropológico e é, neste sentido, que esta encíclica nos pode ajudar hoje a enfrentar os desafios antropológicos que aparecem em nossa sociedade.

A encíclica, ao responder ao problema do uso de anticoncepcionais, situa seu juízo moral numa ampla perspectiva antropológica, com uma visão integral do homem e de sua vocação divina [3]. A encíclica fundamenta sua doutrina sobre a verdade do ato de amor conjugal na “inseparável conexão que Deus quis e que o homem não pode romper por sua própria iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o sentido unitivo e o sentido procriativo”. Com base nisso, ele se opõe à antropologia dominante que considera o ser humano como um construtor de sentido através de suas ações. No âmbito da sexualidade, isso se traduz na pretensão de que o homem não pode limitar-se a ser um sujeito passivo das leis de seu corpo, senão que ele mesmo é quem deve dar significado à sua própria sexualidade. É a antropologia que coloca a liberdade antes da natureza, como se fossem dois elementos inconciliáveis. Contudo, Paulo VI adverte que, antes da liberdade, existem alguns significados, compreensíveis ao homem pela razão, que o homem não escolheu, mas que regulam e orientam o seu comportamento. Se o homem for capaz de reconhecer e interpretar os significados unitivo e procriativo do ato conjugal, realizará retamente sua própria existência, levando-a à plenitude. Segundo a encíclica, a natureza não está em tensão com a liberdade, mas, ao contrário, ela dá à liberdade os significados que possibilitam a verdade do ato de amor conjugal e lhe permitem sua plena realização. Esta é, sob meu ponto de vista, a verdadeira audácia da Humanae Vitae, o que dá à encíclica sua radical atualidade.

Rejeitar a encíclica não implica apenas aceitar a moralidade da contracepção, mas é também assumir uma antropologia dualista que vê a natureza como uma ameaça à liberdade, e que pensa que, manipulando o corpo, é possível mudar as condições de verdade do ato conjugal. A possibilidade de um amor com sexo, mas sem filhos, na realidade derivará de um sexo sem amor, que não só banalizou a sexualidade humana, mas também provocou uma transformação na compreensão do que é a intimidade sexual e do que são, a nível social, as relações sexuais.

Só assim se explica a incapacidade, presente nas sociedades ocidentais atuais, de reconhecer as diferenças morais que se dão entre a união sexual de um homem com uma mulher e a união sexual entre duas pessoas do mesmo sexo. Se é a pessoa quem tem que dar sentido à sua sexualidade por meio de seus atos livres, então não haveria problema em admitir, por exemplo, a relação sexual entre pessoas do mesmo sexo, pois a única coisa que importa é que essa “união afetiva” seja livre e consensual. Assim, segundo esta perspectiva, é a liberdade que determina a verdade da ação. Não se considera necessário que o ato humano, neste caso o ato de amor conjugal, responda a qualquer sentido pré-existente – natural ou estabelecido por Deus -, senão que seja um apenas um ato livre. A encíclica fez oposição a esta antropologia e soube prever os problemas que dela derivariam com uma visão profética [5].

O aspecto profético da Humanae Vitae : o corpo como problema

A rejeição da Encíclica não só afetou a visão do amor e da sexualidade, mas também a percepção do próprio corpo. A antropologia contraceptiva é uma antropologia dualista que tende a considerar o corpo como um bem instrumental, e não como uma realidade pessoal. A frase que dá título a este congresso, “Meu corpo me pertence” , reconhece este carácter instrumental do corpo, este dualismo, onde o corpo fica reduzido a mera materialidade e, portanto, a um objeto susceptível de manipulação.

Esta coisificação do corpo não só pressupõe a perda da verdade do amor humano e da família, mas também tem gerado uma alarmante diminuição dos nascimentos e uma multiplicação do número de abortos. A recusa à indissolubilidade dos dois significados, a qual reivindica a regulação da natalidade através do uso de anticoncepcionais, evoluiu para a manipulação artificial da transmissão da vida, por meio de técnicas de reprodução assistida. Primeiro foi aceita uma sexualidade sem filhos, e depois se aceitou a produção de filhos sem o ato sexual. A vida, fabricada, já não é mais considerada em si mesma como um “dom”, mas como um “produto”, passando a ser valorizada de acordo com sua utilidade. Esta utilidade, medida em funções concretas, é o que atualmente se denomina “qualidade de vida”. A qualidade de vida transforma-se assim num conceito discriminador entre vidas dignas e vidas indignas de serem vividas, onde estas, portanto, podem ser suprimidas: abortos eugênicos, eliminação de deficientes, eutanásia de doentes terminais, etc. Tudo isso adoçado com uma certa “compaixão” para com quem se encontra nesta situação (eliminando os doentes), compaixão para com os seus familiares e para com uma sociedade que se livre de custos desnecessários [6].

Essa manipulação do corpo, própria do relativismo moral e presente na antropologia contraceptiva, está presente em duas ideologias atuais: a ideologia de gênero e o transumanismo. Ambos partem da premissa de que não há verdade capaz de limitar a implementação de seus postulados ideológicos. Novamente a liberdade é colocada em oposição à natureza. Esta exaltação da liberdade, sem ligação com a verdade, faz com que ambas as ideologias apresentem o desejo e a vontade como garantidores últimos das decisões humanas. Por isso a continuação da frase “Meu corpo me pertence” será “…e faço o que eu quero”. Este “o que eu quero” não é outra coisa senão a expressão de ser apenas o desejo o guia da decisão moral. Mas é justamente o próprio corpo humano que aparece como um obstáculo, como um limite, à realização do desejo.

Se a ideologia de gênero pretende exigir que os cidadãos construam socialmente o próprio sexo a partir de uma suposta neutralidade sexual, então para isso é preciso negar uma verdade antropológica básica como é o dimorfismo sexual (masculino e feminino) próprio da espécie humana. É por isso que a ideologia de gênero nega que a identidade da pessoa tenha relação com seu corpo biológico: a pessoa se identifica não por seu corpo (sexo), mas por sua orientação. Apaga-se toda relação com o gênero binário para proclamar a diversidade sexual.

Da mesma forma, no transumanismo, a pessoa fica reduzida à sua mente, ou melhor, às suas conexões neuronais como suporte de sua singularidade. A singularidade é agora a essência da pessoa, sem o corpo, que a identifica e que pode ser transferida para outro corpo humano, a um corpo animal, a um ciborgue ou a um simples arquivo de memória.

A ideologia de gênero e o transumanismo são manifestações dessa antropologia – rechaçada pela Humanae Vitae – que nega ao corpo sua dimensão pessoal, reduzindo-o a mero objeto manipulável. A identidade cultural, social e jurídica da pessoa não estaria intrinsecamente ligada à sua masculinidade ou feminilidade. Sua identidade pessoal passaria a estar baseada na orientação, ou seja, sem ligação com o próprio corpo e sem relação com o corpo do “outro”, com o sexo oposto. É uma antropologia que separou a vocação ao amor da vocação à fecundidade. Nesse sentido é fundamentalmente uma antropologia a-histórica, que busca apenas o momento presente, uma antropologia do carpe diem.

Nesta antropologia, o ciborgue aparece como sua realização pelna. Através do ciborgue é que se alcançará a verdadeira A verdadeira emancipação biológica:

a) porque possibilitará a construção do corpo e do sexo por meio da biotecnologia;
b) por que o ciborgue permite um mundo sem reprodução sexual humana; um mundo sem maternidade: o sonho do feminismo radical.

O ciborgue projeta a ideologia de gênero para um futuro pós-gênero e o transumanismo quer, através do ciborgue, que esse futuro seja pós-humano.

A única resposta possível a essas ideologias passa pela redescoberta de uma antropologia integral da pessoa, como propôs a Humanae Vitae: a unidade de corpo e alma; uma antropologia capaz de compreender a plenitude e a liberdade integradas à natureza humana. Só assim os seres humanos podem ser eles mesmos. Assim o expressou Bento XVI na encíclica Deus Caritas Est: «O homem é realmente ele mesmo quando corpo e alma foram uma unidade íntima […] é o homem, a pessoa, que ama como criatura unitária, da qual fazem parte corpo e alma. Somente quando ambos se fundem verdadeiramente na unidade é que o homem se torna plenamente ele mesmo” [7].

Conclusão

João Paulo II já fazia notar, por ocasião do 20º aniversário da promulgação da Encíclica Humanae Vitae, o seu carácter profético: «os anos posteriores à Encíclica – disse João Paulo II – apesar da persistência das críticas injustificadas e dos silêncios inaceitáveis, puderam demonstrar com crescente clareza que o documento de Paulo VI não só sempre foi altamente atual, mas também rico em significado profético” [8].

O sentido profético da Encíclica encontra seu fundamento na visão antropológica integral do que significa a verdade do amor, da sexualidade e da vida. Uma antropologia integral que rechaça, por um lado, o reducionismo biológico do transumanismo e, por outro, a negação do corpo típica da ideologia de gênero. A encíclica continua válida porque é a resposta correta do Magistério às antropologias dualistas que visam instrumentalizar o corpo e que não são novos humanismos, pós-modernos e seculares, mas verdadeiros anti-humanismos. A encíclica nos oferece uma antropologia da totalidade da pessoa, uma antropologia capaz de unir liberdade e natureza.

Além disso, hoje se cumpre o que a encíclica já havia anunciado: «Prevê-se que este ensinamento talvez não seja facilmente aceito por todos: são muitas as vozes – amplificadas pelos modernos meios de propaganda – que contrastam com a da Igreja. Para dizer a verdade, esta última não se surpreende de ser, à semelhança do seu divino Fundador, um “sinal de contradição” (cf. Lc 2,34); mas nem por isso deixa de proclamar com humilde firmeza toda a lei moral, tanto natural como evangélica”». Também nós, no mundo em que vivemos, somos chamados a ser “sinal de contradição”, proclamando com humildade e firmeza a verdade do ser humano, do amor, da sexualidade e da vida.

Desejo que este Congresso ajude a dar testemunho dessa verdade. Obrigado.

Notas:

[1] Bento XVI, Discurso aos participantes em um Congresso Internacional sobre a atualidade da Humanae vitae (10 de maio de 2008).

[2] Francisco, Exortação apostólica pós-sinodal Amoris laetitiae, sobre o amor na família (19 de março de 2016), n. 82.

[3] Cf. Paulo VI, Carta encíclica Humanae vitae, sobre a regulação da natalidade (25 de julho de 1968), n. 7.

[4] Ibidem, n. 12.

[5] Ibidem, n. 17.

[6] Cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Samaritanus bonus, sobre o cuidado das pessoas nas fases críticas e terminais da vida (22 de setembro de 2020).

[7] Bento XVI, Carta encíclica Deus caritas est, sobre o amor cristão, (25 de dezembro de 2005), n. 5.

[8] João Paulo II, Discurso aos representantes das Conferências Episcopais no XX Aniversário de Humanae vitae, (7 de novembro de 1988).

[9] Paulo VI, Carta encíclica Humanae vitae, sobre a regulação da natalidade (25 de julho de 1968), n. 18.


Curitiba,

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